A proposta do Tesouro Nacional para um novo desenho do teto de gastos sugere a aplicação de um limite mais rígido para o crescimento das despesas de outros Poderes, como Judiciário e Legislativo, e também para gastos com pessoal no Executivo.
Dessa forma, demais despesas (como Previdência, Auxílio Brasil, saúde, educação e investimentos, entre outras) teriam prioridade no espaço adicional gerado a partir da flexibilização da regra fiscal —que permitiria correção dos gastos acima da inflação.
A discussão tem sido colocada pelo órgão do Ministério da Economia como uma sugestão. Por isso, ela ainda não integra oficialmente a proposta que vem sendo apresentada a interlocutores de fora do governo, embora seja considerada relevante para auxiliar na sustentabilidade das contas públicas.
Como antecipou a Folha, o Tesouro Nacional trabalha em uma reformulação do teto de gastos que autoriza o crescimento real das despesas conforme o nível e a trajetória da dívida pública, a uma taxa a ser definida a cada dois anos. A regra também concede um bônus anual de ampliação dos gastos em caso de melhora do superávit nas contas públicas.
A proposta está em fase final de elaboração e deve ser divulgada em novembro. “Independentemente de quem for o vencedor da eleição, a gente quer contribuir com o debate. Esse é o papel que cabe ao Tesouro”, disse o secretário do órgão, Paulo Valle, em entrevista coletiva em 29 de setembro.
Hoje, o limite de despesas é corrigido apenas pela inflação. Pelo desenho preliminar, o novo teto poderia ter um crescimento real de 0% a 1%, caso o endividamento esteja aumentando. Mas o ganho poderia ser maior, de 0,5% a 2%, se a trajetória da dívida for de queda.
O percentual exato a ser aplicado dependeria do nível de endividamento. Além disso, o governo poderia ter um bônus de 0,5 ponto porcentual caso o resultado primário (diferença entre receitas e despesas) seja positivo e também mostre melhora com o passar dos anos.
A sugestão de incluir limites diferenciados para os demais Poderes busca evitar que esses órgãos incorporem para si ganhos que deveriam ser direcionados para políticas públicas, cuja realização está concentrada nas mãos do Poder Executivo.
No formato atual do teto, não há diferenças entre os Poderes e a mesma variação é aplicada aos limites individuais de Executivo, Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Defensoria Pública.
Por isso, quando o governo Jair Bolsonaro (PL) articulou, no fim de 2021, uma mudança na correção do teto de gastos para conseguir gastar mais em ano eleitoral, os demais Poderes também foram beneficiados. Eles acumulam juntos uma sobra de R$ 2,7 bilhões em 2022 e já planejam usar o espaço para conceder reajustes salariais a seus servidores no ano que vem.
Enquanto isso, o Executivo precisou bloquear R$ 10,5 bilhões de suas despesas neste ano e vê seu volume de investimentos cair ano a ano. Entre as explicações estão a ausência de revisão em outros gastos e o crescimento mais acelerado de rubricas como a Previdência, afetada por outros fatores —como o envelhecimento da população.
A premissa dos técnicos é que o mais apropriado seria flexibilizar o teto para permitir ampliação de investimentos, um tipo de gasto mais nobre e com retorno social elevado, e proporcionar melhor acomodação de benefícios sociais.
Nesse cenário, essas despesas teriam o limite corrigido pela regra proposta, com aumento real em caso de dívida sob controle e com bônus adicional em caso de contas públicas no azul e em trajetória de recuperação.
Já as despesas com salários no Executivo e os gastos dos demais Poderes poderiam seguir uma regra mais rígida —ou seja, uma correção menor que a aplicada sobre o orçamento das políticas públicas.
Dentro do governo, acredita-se que esse formato daria mais conforto à expansão de gastos no Executivo, além de promover maior alinhamento entre as políticas de pessoal praticadas dentro da administração pública.
Além de ostentarem salários mais elevados, Judiciário, Legislativo e Ministério Público acabam, por vezes, conquistando reajustes mais benevolentes em suas remunerações.
Neste ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) encaminhou uma proposta de aumento de 9% para 2023, seguido de outros 9% em 2024. A reivindicação acabou virando parâmetro para todo o Judiciário e também para o MP.
Já o Executivo reservou R$ 11,6 bilhões na proposta de Orçamento de 2023 para ampliar salários de seus servidores, o que é suficiente para um reajuste linear de 4,85%.
Nos últimos anos, o teto de gastos passou por sucessivas alterações para acomodar gastos extras com benefícios sociais. A iniciativa mais recente ocorreu às vésperas da campanha eleitoral, para instaurar um “estado de emergência” e abrir caminho ao Auxílio Brasil turbinado de R$ 600 e benefícios a caminhoneiros e taxistas, grupos que integram a base de apoio de Bolsonaro.
Sem os mesmos subterfúgios, o Orçamento de 2023 foi enviado ao Congresso Nacional sem recursos para assegurar a continuidade do Auxílio Brasil de R$ 600 e com um amplo corte em áreas sociais. Para evitar um apagão, economistas que assessoram os principais candidatos à Presidência da República têm defendido mudanças no teto.
A proposta do Tesouro vem sendo desenvolvida pelos técnicos como forma de contribuir para essa discussão.
Como o Tesouro é um órgão de Estado, há um cuidado nos bastidores para evitar que a proposta seja contaminada por divergências eleitorais. Mas a postura é de colaboração diante de eventual demonstração de interesse de interlocutores do futuro presidente eleito.
Caso Bolsonaro seja o vencedor nas urnas, auxiliares do ministro Paulo Guedes (Economia) avaliam que o aproveitamento da proposta deve ser feito de forma orgânica, embora o próprio ministro tenha suas visões de como o novo teto deveria ser formatado. Um dos objetivos centrais de Guedes é ter no arcabouço de regras fiscais algum tipo de incentivo à redução do Estado por meio da venda de ativos e privatizações.
Dentro da campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ainda não há um consenso sobre a regra fiscal a ser adotada. Como mostrou a Folha, uma ala defende a retomada do indicador de resultado primário como principal referência, mas com bandas que permitam absorver eventuais frustrações de arrecadação.
Outro grupo prefere manter alguma regra para gastos, mas mais flexível que o teto atual. Alguns participantes desses debates defendem inclusive um limite específico para a folha de pagamento do Executivo.
A campanha petista, porém, tem evitado dar detalhes de qual será o novo arcabouço proposto caso Lula vença as eleições. O discurso do ex-presidente e seus auxiliares é de que isso precisará ser negociado com o novo Congresso.