Que levantem a mão aqueles que nunca usaram o celular na hora de dormir.
Desde checar as últimas notícias até ver as postagens mais recentes nas redes sociais, a luz azul do aparelho nunca está distante.
O problema é que estudos apontam que o uso da tela tem tido um impacto devastador no nosso sono.
O motivo é a melatonina, hormônio produzido na glândula pineal do cérebro.
A melatonina tem um papel crucial em regular o ciclo de dormir e despertar do nosso corpo e às vezes é chamada de “hormônio da escuridão”, já que seus níveis baixam durante o dia, mas aumentam à noite, quando a luz do sol desaparece.
Qualquer coisa que eleve o nível de a luz na hora de dormir – como o brilho azul das telas eletrônicas – pode atrapalhar a produção natural de melatonina e dificultar o sono.
Isso ajuda a explicar por que até um em cada três adultos americanos não têm dormido as sete a oito horas diárias de sono de que a maioria das pessoas precisa.
Não surpreende, então, que milhões de pessoas estejam se voltando a suplementos de melatonina para combater a insônia, o jet lag ou a dificuldade de dormir depois de trabalhar até tarde.
O hormônio foi liberado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Brasil em 2022.
Mas, entre médicos, cresce a preocupação de que a melatonina não seja tão segura quanto as campanhas de marketing dizem.
Durante a pandemia de covid-19, Michael Toce, pediatra do pronto-socorro do Hospital Infantil de Boston, nos Estados Unidos, percebeu uma tendência alarmante: o número de crianças internadas por overdose de melatonina estava disparando.
“Vemos crianças pequenas acidentalmente engolindo melatonina e adolescentes que ingeriam como forma de automutilação”, diz Toce.
Um estudo de 2022 de coautoria de Toce identificou que, entre 2012 e 2021, os chamados para relatar casos de overdose de melatonina cresceram 530%.
Em 2020, os serviços americanos de controle de intoxicação receberam mais relatos de casos de overdose infantil por melatonina do que por qualquer outra substância.
A descoberta foi reforçada por um estudo de junho de 2023, que identificou que o número de crianças levadas ao pronto-socorro por overdose de melatonina nos Estados Unidos cresceu 420% em uma década.
“O aumento provavelmente deriva do aumento no uso de melatonina”, diz Toce.
“As vendas da melatonina cresceram nos últimos anos, assim como o uso pediátrico. Crianças se intoxicam com o que têm ao seu redor – sendo assim, o aumento na disponibilidade leva ao aumento na intoxicação.”
Vale ressaltar que a maioria das crianças analisadas em ambos os estudos não apresentaram nenhum sintoma ou apenas sintomas leves, como dor de barriga, vômito ou tontura.
Mas, no estudo mais amplo de Toce, que analisou 260.435 casos de ingestão de melatonina, ele identificou quase 300 casos de internação em UTI. Cinco delas tiveram de ser entubadas, e duas morreram.
A melatonina foi apontada como causa de outras mortes infantis também. Um estudo de 2019 documentou dois casos separados, envolvendo um bebê de nove meses e um de 13 meses, ambos encontrados desmaiados.
Os exames toxicológicos da autópsia de ambos mostraram altos níveis de melatonina – havia traços da substância também no copo usado pelo bebê de 13 meses.
Mas, nas duas mortes, houve fatores que contribuíram para o desfecho trágico: o primeiro bebê estava dormindo na mesma cama que um irmão mais velho; e o segundo bebê havia sido deixado em um quarto quente.
As duas práticas são fatores que elevam o risco de morte súbita infantil (SMSL).
Tem havido efeitos adversos também em adultos. Um estudo de maio deste ano reportou o caso de uma mulher de 21 anos que morreu de overdose de melatonina e difenidramina, um anti-histamínico usado para tratar alergias, insônia e sintomas de resfriados.
Em outro caso, um adolescente apresentou hipotensão (baixa pressão sanguínea severa) depois de tentar uma overdose de melatonina.
No entanto, é possível que essas mortes ou efeitos adversos sérios não tenham sido diretamente causados pela melatonina, mas sim por outro problema de saúde não relacionado.
Parte do problema é que, como a substância é classificada como suplemento, não é regulada pelo órgão que controla alimentos e remédios nos EUA, a agência FDA.
A melatonina não passou por testes clínicos rigorosos, então, não existe uma compreensão ampla do impacto do suplemento hormonal nos nossos corpos, nem de como ele interage com outros alimentos e suplementos.
Além disso, a dosagem de melatonina em diferentes produtos varia muito.
“É tipo um velho oeste”, afirma David Ray, professor de Endocrinologia e codiretor de sono e neurociência circadiana na Universidade Oxford.
“Foram feitos estudos medindo a dosagem de melatonina desses produtos – e em nenhum dos casos a dosagem real equivalia ao que era dito na embalagem.”
Não se sabe quais são os mecanismos exatos em que a melatonina poderia causar as mortes ou reações adversas.
Estudos em ratos e camundongos indicam que a melatonina tem um efeito tóxico em doses extremamente altas (mais de 400mg por quilo), mas isso é muitíssimo mais do que a dose recomendada (2 a 10mg) para tratar problemas de sono.
O que se sabe é que há receptores de melatonina pelo corpo, incluindo nos sistemas reprodutivo, cardiovascular e imunológico – mas os efeitos da substância fora do cérebro são pouco conhecidos.
Ao mesmo tempo, milhões de pessoas tomam melatonina diariamente sem qualquer efeito adverso.
“Todas as medicações têm efeitos colaterais, então em relação a outras drogas usadas para tratar o sono, ela é considerada muito segura”, afirma Sanford Auerbach, professor e diretor do Centro de Distúrbios do Sono do Centro Médico de Boston.
“No entanto, acho que o que mais preocupa é o desconhecido. Se você dá (a melatonina) a uma criança em desenvolvimento, qual impacto isso vai ter daqui a dez anos? Não sabemos. Sequer sabemos quanta melatonina é em excesso, porque tais estudos simplesmente nunca foram feitos.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Future