A casa de vovó Laura era arejada, emoldurada por um jardim aprumado, daqueles que formava uma cerca natural ao dar volta na esquina, bem no coração de Vera Cruz (SP). Era ali que a família dela se reunia para celebrar o aniversário de Jesus, só que quem garantia a festa natalina era Manoel —aqui, o tio do sommelier do Fasano.
Engenheiro que trabalhava na Transamazônica, tinha acesso fácil à Zona Franca de Manaus. De lá, trazia brinquedos eletrônicos, para a criançada, e vinhos importados, para os adultos, exemplares raros no fim dos anos 1970.
Aos 13 anos, Manoel Beato, o sobrinho que viria a ser um sommelier de respeito, provaria a sua primeira tacinha de vinho. De leve, tonteou, viu o mundo dar um giro, mas a empolgação com o carrinho de controle remoto, que ganhou de presente do tio, logo o trouxe de volta aos trilhos.
Parecia um presságio de uma vida regada a vinhos. Bons vinhos? Nem sempre. Um ano depois, num casamento arrasa quarteirão na mesma cidade do interior paulista, ele se achou confiante o suficiente para encarrar umas garrafas de tinto chileno, outras de brancos portugueses e sabe-se lá mais o quê.
Dosagem exagerada, pensou, enquanto colocava os bofes para fora, bem ali, atrás da igreja matriz de Vera Cruz. Em meio à ressaca, a embriaguez arrependida o fez jurar que bebida igual àquela nunca mais botaria na boca.
Ao longo da vida, Beato ganhou, como dizem os entendidos em vinho, litragem. Desde a bebedeira na terra natal, já provou uns 400 mil rótulos da bebida produzidos por vinícolas de todo o planeta —isso não significa que ele tenha tomado todas essas garrafas.
Neste mês de março, Manoel Beato, hoje aos 58 anos, completa quase metade deles, 30 anos, à frente do mais famoso restaurante italiano do Brasil. “Desde o começo, tive carta branca no Fasano. A minha história se mistura com a do restaurante”, conta Beato.
Para Gero Fasano, 60, restaurateur do Grupo Fasano, “às vezes, o Manoel trabalha para o Fasano, às vezes, o Fasano trabalha para o Manoel”. Considerado o maior sommelier do país, Beato é figura serena, de fala mansa, ao circular pelas 20 mesas do restaurante e outras três do bar, numa área de 850 m² —sem falar do espaço privê, que pode receber até 30 convidados.
Ao exibir o rótulo aos comensais, explica a origem da bebida, o ano da safra, o que harmoniza com o quê. Aos habitués, costuma sugerir obras literárias recheadas de referência ao universo de Baco.
Trabalha com ao menos 400 rótulos por noite. De delicadeza nos gestos, é do tipo que passa longe da arrogância. Nas palavras dele, modernidade tem a ver com naturalidade. “Ser chique é ser natural.”
Antes do Fasano, foi garçom nas horas vagas do curso de letras na Unesp, de Assis (SP). De mudança para a maior cidade do país, em meados dos anos 1980, passou também a correr com a bandeja por aqui.
Num rompante de saturação do grande centro, queria estudar mais, ler mais, viajar mais ainda e partiu para a Europa. Primeiro, Portugal, onde seguiu a lida de garçom. Depois, colheu uvas de Jayer-Gilles, renomado produtor da região vinícola da Borgonha, na França, por cerca de um ano, ao mesmo tempo em que atuou como garçom num restaurante de Grenoble.
A cidade não foi escolha em vão. Lá nasceu Henri-Marie Beyle, conhecido pelo pseudônimo Stendhal, escritor de “O Vermelho e o Negro”, clássico que Beato tanto admira. “A literatura me ajudou a aprimorar a minha relação com as pessoas”, explica. “É necessário tornar nossas falas um tanto mais leves.”
De volta a São Paulo, passou pelo restaurante do Maksoud Plaza, hotel que fechou as portas. Logo, migrou para o Saint Germain, nos Jardins, que também não existe mais. Cuidava da adega com rótulos de Romanée-Conti, um dos mais celebrados do mundo.
Passou pelo extinto Le Bistingo, espaço considerado ousado à época, tanto na gastronomia quanto na variedade de vinhos. Foi lá que Beato aprofundou os estudos de perfumes e aromas da bebida.
Num estágio na França, inovou mais uma vez, ao levar para Lille o hábito de provar vinho na frente do cliente.
No início dos anos 1990, Ciro Lilla, dono da Mistral, uma das maiores importadoras de vinhos do Brasil, à época presidente da ABS-SP (Associação Brasileira de Sommeliers), recebeu um telefonema de Rogério Fasano, pedindo a indicação de um bom sommelier.
“Naquela noite, recebi a visita de Beato, que veio me pedir a indicação de um restaurante que estivesse procurando um sommelier. Disse a ele: ‘Dá meia-volta e corre lá para o Fasano'”, lembra Lilla, 73.
Beato correu. E segue correndo. Agora o sommelier está em Nova York, onde estreia a filial do Fasano na cidade .