Nesta semana, ao avaliar as necessidades humanitárias geradas pela crise na Ucrânia, a cúpula da ONU chegou a uma outra constatação: a guerra e a aplicação de amplas sanções contra a Rússia ameaçam aumentar o exército de famintos pelo mundo, além de abrir o risco de instabilidade social.
Vencedor do Prêmio Nobel de 2020, o Programa Mundial de Alimentação comprou 1,4 milhão de toneladas para distribuir aos países mais pobres do mundo. Mas 70% de toda essa compra vem justamente dos dois países que protagonizam a guerra.
O fornecimento de alimentos já era considerado como desafiador no final de 2021. Com a seca em determinadas regiões e safras abaixo do esperado no Canadá e Argentina, os preços das commodities tinham atingido seu ponto mais alto em mais de uma década, pressionando a inflação em dezenas de países. Para completar, a pandemia tinha desfeito avanços sociais obtidos nos últimos 30 anos. O resultado foi um aumento exponencial da fome, com alertas lançados pela FAO.
Agora, o cenário é ainda mais preocupante. Juntas, a Ucrânia e a Rússia representam um terço do comércio mundial de trigo e 12% de todas as calorias comercializadas. Kiev ainda abastece o mundo com 15% do fornecimento de milho do planeta, enquanto ambos são fundamentais no comércio de outros itens agrícolas.
Alguns óleos ainda dependem do comércio de Ucrânia e Rússia, com 80% no caso de óleo de girassol. Isso, claro, sem contar com o papel fundamental de Moscou no abastecimento mundial de fertilizantes.
No Líbano, 90% do trigo vem da Ucrânia e tem o papel central para a alimentação da Somália e Síria. Já 70% do trigo importado pela Turquia vem da Rússia.
Agora, com sanções financeiras e comerciais contra a Rússia e a batalha nos campos ucranianos, entidades concordam que o abastecimento global está ameaçado. Empresas de transporte pararam de oferecer seus serviços aos russos, enquanto muitos dos homens que estariam no campo hoje fazem parte das milícias convocadas pelo governo de Kiev.
Se o impacto global é claro, a ONU alerta que, em certos locais, a falta de produtos russos e ucranianos pode levar ao aumento da fome. No Egito, por exemplo, mais de 50% das calorias importadas vem dos dois países em guerra. Sudão, Líbia e República Democrática do Congo também são fortemente dependentes do abastecimento desses países.
Em 2019, a Etiópia importou US$ 458 milhões em trigo, dos quais mais de US$ 200 milhões vieram de russos e ucranianos.
No Iêmen, os dois países abasteceram um total de US$ 225 milhões em trigo, praticamente metade de toda a importação do país no Golfo.
Na mente de muitos na ONU estão os acontecimentos entre 2008 e 2012, quando a alta no preço de alimentos gerou instabilidade social, confrontos abertos e, para alguns teóricos, foram decisivas para abrir o caminho para a Primavera Árabe.
No total, mais de 40 países traduziram a inflação daqueles anos em confrontos sociais e até na queda de governos.
Com o temor de que o mesmo cenário volte a ocorrer, as agências internacionais ampliam negociações com novos fornecedores. Mas admitem que, mesmo se encontrarem volumes suficientes, os preços serão mais elevados.
Não por acaso, a guerra entre Moscou e Kiev deixou as entidades internacionais em estado de alerta.
“O conflito é o principal motor da fome e da insegurança alimentar no mundo”, disse o diretor executivo do Programa Mundial de Alimentação da ONU, David Beasley. “Temos agora 283 milhões de pessoas marchando para a fome com 45 milhões batendo à porta da fome aguda”, disse. “O mundo não pode permitir que outro conflito aumente ainda mais o número de pessoas famintas”, alertou.
“A bacia do Mar Negro é uma das áreas mais importantes do mundo para a produção de grãos e agricultura, e o impacto do conflito na segurança alimentar provavelmente será sentido além da fronteira da Ucrânia, especialmente sobre os mais pobres dos pobres”, disse.
Antes da guerra chegar, a ONU alertava que 811 milhões de pessoas iriam para a cama com fome todas as noites ao redor do mundo, com o número dos que enfrentam a insegurança alimentar aguda tendo saltado de 135 milhões para 283 milhões desde 2019, uma consequência da pandemia de covid-19.