A história dos sobreviventes do 1º teste de bomba atômica: ‘Dos 10 irmãos, só restou eu’ – 05/03/2022

Mais de 75 anos depois, moradores do Novo México ainda lutam por reconhecimento e compensação pelos problemas de saúde decorrentes da exposição a radiação.

Assim como fazia todos os dias, o americano Demecio Peralta estava alimentando as vacas no curral de seu rancho na manhã de 16 de julho de 1945.

Sua mulher, Francesquita Silva Peralta, grávida do décimo filho, estava na pequena casa de três cômodos em que a família vivia, nos arredores de Capitan, uma comunidade rural no Estado do Novo México, que tinha na época menos de mil habitantes.

Mas, naquela manhã, a rotina do casal foi abalada pelo ruído de uma enorme explosão, que fez tremer o chão e foi acompanhada de um clarão “mais forte que o sol” e de uma nuvem escura de fumaça.

Sem saber o que havia acabado de presenciar, Demecio correu para casa e encontrou a mulher e as duas filhas mais velhas escondidas em um canto, chorando e rezando.

“A explosão sacudiu a casa e quebrou as janelas”, diz à BBC News Brasil a filha mais nova do casal, Genoveva Peralta Purcella, nascida poucos meses depois. “Todos achavam que o mundo estava acabando.”

Quando, mais tarde, Demecio foi inspecionar o gado, “viu que todas as vacas estavam cobertas por um pó branco, assim como todo o solo”, conta Purcella. “A ‘neve’ estava por toda parte.”

Só muito tempo depois os Peralta e as outras famílias da região descobririam o motivo da explosão e a origem da cinza que caía do céu: a poucos quilômetros dali, o governo americano havia realizado o primeiro teste de uma bomba atômica do mundo.

O chamado Teste Trinity era parte do Projeto Manhattan, programa para desenvolver bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar de o local escolhido para detonar a bomba, o deserto de Jornada del Muerto, ser considerado remoto, muitas famílias viviam nas proximidades, em ranchos isolados e pequenas comunidades rurais.

Esses moradores, muitos deles de origem indígena ou hispânica, nunca foram evacuados e nem mesmo alertados sobre a realização do teste. Sem saber que estavam expostos a radiação, continuaram a levar uma vida normal.

Mas o teste teria impacto profundo nessas comunidades. Mais de 75 anos depois, seus efeitos continuam a ser sentidos pelos sobreviventes e seus descendentes.

“Dos dez (irmãos), sou a única sobrevivente”, lamenta Purcella. “Todos, com exceção de um, morreram de câncer.”

Ao contrário de moradores nas imediações de testes nucleares posteriores, que foram compensados por problemas de saúde, os sobreviventes no Novo México nunca receberam reconhecimento.

Até hoje, essas famílias esperam serem incluídas em um programa do governo que oferece compensação aos afetados.

‘Distante de áreas povoadas’

Um relatório sobre o planejamento e a execução do Trinity, publicado em 2010 pelo Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde nacional), informa que, inicialmente, oito locais foram considerados para a realização do teste: três no Novo México, dois na Califórnia, um no Texas e um no Colorado.

Os cientistas buscavam uma área com terreno plano e clima ensolarado, entre várias outras características. Um dos principais critérios era o de que fosse “distante o suficiente de áreas povoadas”.

O chefe militar do Projeto Manhattan, o major-general Leslie Groves, originalmente preferia uma área na Califórnia, mas acabou optando pelo deserto de Jornada del Muerto, no Novo México.

O anúncio da escolha foi feito em agosto de 1944. No início de 1945, mais de 200 cientistas, militares, técnicos, equipes médicas e de construção já haviam se instalado no local, trabalhando sob segredo para construir a infraestrutura necessária para o teste.

Às 5h29 da manhã de 16 de julho de 1945, a bomba de plutônio foi içada para o alto de uma torre e detonada.

Segundo descrição do Departamento de Energia dos Estados Unidos, a detonação “liberou 18,6 quilotoneladas de energia, vaporizando instantaneamente a torre e transformando o asfalto e a areia ao redor em vidro verde”.

‘Mais quente que o sol’

A explosão foi mais potente do que o antecipado, gerando calor “10 mil vezes mais quente do que a superfície do Sol”.

As equipes que observavam o teste descreveram a sensação de calor que “persistiu à medida que uma enorme bola de fogo se formou”.

Quem estava presente disse ter visto uma “nuvem de cogumelo gigante cercada por um clarão azul”, seguida da “pressão de uma onda de choque” e de um estrondo que “reverberou por mais de 5 minutos”.

“A explosão nuclear gerou um clarão de luz mais claro que uma dúzia de sóis. A luz foi vista no Novo México inteiro e em partes do Arizona, do Texas e do México”, diz o CDC.

A violência da detonação quebrou janelas em cidades a mais de 150 km de distância.

Segundo o relatório, somente 1,2 kg do total de 6 kg de plutônio no centro da bomba sofreu fissão, enquanto o restante se dispersou na cinza nuclear.

“Aproximadamente 4,8 kg de plutônio permaneceram sem sofrer fissão e se dispersaram no meio ambiente”, diz o documento.

A nuvem de cogumelo subiu acima de 20 km e se dividiu em três grandes partes. Uma foi para o leste, a outra para oeste e noroeste, e a terceira para nordeste, “deixando um rastro de produtos de fissão”.

A nuvem atravessou o país, sendo vista até na Nova Inglaterra, no nordeste do país.

Cinza caindo do céu

Apesar de não haver habitantes na zona imediatamente ao redor do local do teste, cerca de 15 mil pessoas moravam em um raio de 25 km, e quase meio milhão em um raio de 250 km.

Tina Cordova pertence à sétima geração de uma família com raízes em Tularosa, pequena cidade localizada a cerca de 75 km do local do Trinity e que, na época, tinha em torno de 1,5 mil moradores.

Ela nasceu 14 anos depois do teste, mas lembra do que a avó contava sobre o dia em que a bomba foi detonada:

“Ela dizia que lembrava principalmente da cinza caindo do céu durante vários dias após a explosão”, diz Cordova à BBC News Brasil.

Essa substância branca, que chegou a ser confundida com neve por alguns moradores da região, apesar de ser quente, impregnou as roupas e a pele das pessoas, os animais, as hortas, lagos, rios e as cisternas que captavam e armazenavam água da chuva para consumo.

“Em 1945, não havia água encanada nas áreas rurais do Novo México”, observa Cordova. “A maioria das famílias tinha uma cisterna.”

‘Tudo estava contaminado’

Sem saber do risco que corriam, os moradores continuaram a usar a água contaminada para beber, cozinhar, tomar banho, limpar a casa, regar pomares e hortas e dar de beber aos animais.

Quase todos criavam galinhas, vacas e porcos para consumo de carne, ovos e laticínios. Também caçavam pequenos animais silvestres e pássaros e plantavam frutas e verduras.

“E agora tudo estava contaminado. O solo, e tudo o que crescia nele, inclusive pasto para os animais, estava contaminado”, ressalta Cordova.

O modo de vida era o mesmo nas outras comunidades rurais da região, como Capitan, onde a família de Genoveva Purcella vivia, a pouco mais de 100 km do local do teste.

“Meu pai plantava milho, feijão e batata. Minha mãe tinha uma horta, plantava verduras e legumes. Era isso que nós comíamos”, lembra Purcella.

“A água da chuva que escorria do telhado era levada por um cano à cisterna, e nós bebíamos.”

Cordova ressalta que as pessoas que viviam na região foram contaminadas de várias maneiras, entre elas inalando o ar impregnado pela cinza que caiu durante vários dias, ingerindo água e alimentos contaminados e também por absorção pela pele.

Intenso sigilo

Em vez de avisar os moradores da área sobre os riscos, após o teste o governo agiu para “suprimir qualquer tipo de notícia que pudesse alarmar o público” e divulgou a falsa informação de que a explosão havia ocorrido em um depósito de munições em uma localidade remota.

“Por causa do intenso sigilo envolvendo o teste, informações corretas sobre o que realmente tinha acontecido não foram divulgadas para o público antes de que a segunda bomba atômica fosse derrubada sobre o Japão três semanas depois”, diz o relatório do CDC.

A segurança dos moradores das áreas afetadas não era tão prioritária quanto a manutenção do segredo.

“Era importante que os japoneses não fossem alertados”, diz o documento, e precauções elaboradas de segurança pública atrairiam mais atenção.

Inicialmente, acreditava-se que as partículas radioativas na atmosfera resultantes do teste não representariam um grande problema.

“Groves descartou qualquer ideia de alertar com antecedência” moradores da região, porque o perigo parecia pequeno dadas as condições meteorológicas ideais.

Mas, nos dias imediatamente anteriores ao teste, novos cálculos indicaram que a cinza nuclear se espalharia mais do que o originalmente esperado.

No entanto, a preocupação maior era com riscos imediatos, “já que na comunidade de proteção radiológica o pensamento ainda não estava focado nos possíveis efeitos de longo prazo”.

‘Riscos de saúde significativos’

Após a explosão, muitos moradores relataram terem observado queimaduras nos animais. Algumas vacas perderam partes do pelo, que depois cresceu de novo descolorido. Outros disseram que as galinhas morreram.

Cordova salienta que o governo chegou a confiscar o gado em algumas propriedades, para observação. “Mas nunca alertaram as pessoas, e nunca fizeram nada para ajudar as pessoas ou explicar os riscos”, afirma.

Décadas depois do teste, o diretor da equipe encarregada de monitorar os níveis de radiação na área, Louis Hempelmann, admitiu que “algumas pessoas provavelmente foram muito expostas”.

“Mas elas não podiam provar isso, e nós (também) não podíamos”, disse Hempelmann.

De acordo com o CDC, “as avaliações sobre exposição do público (à radiação) do teste Trinity que foram publicadas até hoje são incompletas, por não refletirem as doses internas recebidas pelos residentes (da região) por meio de ingestão de radioatividade suspensa no ar e água e alimentos contaminados”.

“Como membros do público que viviam em um raio de 30 km não foram realojados, as doses internas de radiação resultantes (do teste) podem ter representado riscos de saúde significativos para indivíduos expostos após a explosão”, diz o documento.

Várias gerações com câncer

Genoveva Purcella tinha 16 anos de idade quando seu pai, Demecio Peralta, morreu de câncer. “Ele teve câncer de estômago, câncer nos olhos e linfoma de Hodgkin”, lembra.

Sua mãe, Francesquita, foi diagnosticada com câncer de mama, e seus irmãos desenvolveram vários tipos de câncer.

“Uma de minhas irmãs morreu de câncer de mama aos 33 anos de idade. (Anos mais tarde) sua filha desenvolveu a mesma doença e morreu”, lamenta Purcella, que também foi diagnosticada com a doença no passado, mas se curou após tratamento.

Tina Cordova também viu vários membros de sua família adoecerem e morrerem de câncer após a detonação da bomba.

“Eu sou a quarta geração da minha família a ter câncer desde o teste Trinity”, diz Cordova, que foi diagnosticada com um tumor maligno na tireoide em 1997, aos 39 anos de idade.

“Dois de meus bisavôs, que moravam em Tularosa na época do teste, morreram de câncer de estômago”, relata Cordova.

“Ambos foram diagnosticados em 1955. Isso em uma época em que ninguém na nossa comunidade ouvia falar de câncer.”

“Ambas as minhas avós tiveram câncer, apesar de não terem morrido disso”, afirma.

Seu pai, Anastacio Anthony Cordova, que tinha 4 anos de idade na época do teste, teve câncer de próstata e dois tipos de câncer oral, e morreu da doença em 2013.

Sua mãe, duas tias, um primo e uma irmã também enfrentaram a doença. “E minha família nem é tão afetada como outras (da região), nas quais todos os membros foram diagnosticados (com câncer)”, ressalta.

Cordova conta que, quando foi diagnosticada, seus médicos perguntaram se ela havia sido exposta a radiação, trabalhado em algum laboratório com isótopos radioativos ou feito muitas radiografias ao longo da vida.

“E minha resposta era ‘Não. Mas eu cresci em uma cidade a 75 km do local do teste Trinity’.”

‘Papel na defesa do país’

Quando os Estados Unidos lançaram a bomba atômica sobre Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, alguns moradores da área próxima ao Trinity fizeram a ligação com a explosão que haviam presenciado menos de um mês antes.

Mas o governo continuou sem oferecer explicação sobre o que havia acontecido nem alertar sobre os riscos da radiação.

“O governo nos incutiu que deveríamos ter orgulho do papel que desempenhamos para acabar com a Segunda Guerra Mundial, do papel que desempenhamos na defesa do nosso país”, diz Cordova.

Mesmo quando, nos anos posteriores, muitos membros das comunidades locais começaram a ser diagnosticados com câncer, nem todos desconfiaram de que poderia haver uma conexão com o teste.

“As pessoas não faziam a ligação entre os problemas de saúde que estavam sofrendo e o teste”, afirma Cordova.

Cordova conta que, ao ficar adulta, começou a perceber que deveria haver uma ligação entre a explosão do passado e o grande número de pessoas doentes.

Mas foi somente em 2004, após ler uma carta enviada por outro morador da região, Fred Tyler, a um jornal local, que ela passou a cobrar uma resposta do governo.

Na carta, Tyler dizia que, depois de anos longe da região, havia voltado e encontrado muita gente doente e morrendo.

Cordova, que na época já havia deixado a cidade natal e morava em Albuquerque, entrou em contato com ele.

Juntos, eles criaram o Tularosa Basin Downwinders Consortium, organização dedicada a chamar a atenção para o caso e buscar uma admissão do governo sobre os danos causados à população local.

Nos últimos 17 anos, Cordova vem coletando depoimentos e documentando problemas de saúde de moradores que presenciaram o teste e seus descendentes.

Lei de compensação

Em 1965, as Forças Armadas ergueram um obelisco no local do teste Trinity. Dez anos depois, a área foi designada como monumento histórico nacional.

Atualmente, o local é administrado pelo Serviço Nacional de Parques e aberto a visitação pública duas vezes por ano, no primeiro sábado de abril e no terceiro sábado de outubro.

Segundo o Departamento de Justiça, os Estados Unidos conduziram cerca de 200 testes de armas nucleares entre 1945 e 1962.

Além disso, milhares de pessoas trabalharam na mineração e processamento de urânio, “essencial para o desenvolvimento das armas nucleares na nação”.

“Após a conclusão dessas atividades, processos judiciais contra o governo dos Estados Unidos alegaram falhas em alertar sobre os riscos de exposição à radiação”, diz o departamento.

Em 1990, foi aprovada a Lei de Compensação por Exposição a Radiação (RECA, na sigla em inglês), que prevê o pagamento de restituição a pessoas que desenvolveram doenças graves devido à exposição à radiação durante os testes ou ao trabalharem na indústria de urânio.

Desde então, mais de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10,3 bilhões) foram pagos a mais de 45 mil pessoas, entre trabalhadores das minas de urânio, funcionários do governo que atuaram nos locais dos testes e moradores de áreas afetadas em Estados como Nevada, Utah e Arizona.

No entanto, apesar de funcionários que trabalharam no Trinity terem sido compensados, os civis que moravam na área próxima ao teste não foram incluídos na lei e nunca receberam qualquer tipo de compensação ou reconhecimento, nem explicação sobre por que foram excluídos.

‘Muitos morreram esperando’

“Se sabiam que o teste (posterior) em Nevada causou danos às pessoas, como não perceberam que o teste Trinity causou danos aqui?”, questiona Cordova.

Agora, depois de anos de esforços de senadores e deputados do Estado, estão em tramitação no Congresso dois projetos de lei, um na Câmara e outro no Senado, que propõem a extensão da RECA, prevista para expirar em julho deste ano, e a inclusão dos moradores afetados pelo Trinity e de comunidades nos Estados de Colorado, Idaho e Montana.

“Se não conseguirmos (incluir essas pessoas) antes da expiração (da RECA), provavelmente nunca conseguiremos”, lamenta Cordova.

Quase oito décadas depois do teste, os sobreviventes têm idade avançada. “Esperaram todos esses anos por ajuda, e nunca receberam. Muitos morreram esperando”, ressalta Cordova, lembrando que várias famílias gastaram tudo o que tinham com cuidados médicos.

“As pessoas não podem mais ignorar isso. Agora que sabem da história, se permanecerem complacentes, se não fizerem algo sobre isso, serão cúmplices nessa injustiça”, diz Cordova.


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