Temporais no RS alagam vinhedos na Serra Gaúcha, e produtor diz: 'Nem imagino o tamanho do estrago'


Local é polo de produção de vinhos e destino importante para turistas. Mercado vinícola tem desafios logísticos à frente, com o fechamento do aeroporto de Porto Alegre e com os danos em estradas do entorno, impactadas pelos deslizamentos de terra. Água acumulada em parreiras de Bento Gonçalves (RS)
Fábio Tito/g1
Desde criança, Flávio Rotava, de 51 anos, ajuda o pai Alfeo, de 80 anos, a produzir vinhos em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. A tristeza resume o sentimento ao ver como suas parreiras foram atingidas pelas fortes chuvas no Rio Grande do Sul desde o fim de abril.
O impacto no cultivo de uvas é certo, com estimativa de perder de 20% a 30% da próxima colheita. Foram 250 hectares danificados pelo que Flavio chamou de avalanches.
“A perda vai ser grande”, diz. “É praticamente uma área que vai ficar imprópria para o cultivo de videiras e vai ser praticamente extinta para trabalho”, conta Rotava, que estima por ano a produção de 100 mil garrafas Rotava, marca que leva o nome da família.
Números preliminares da Emater/RS-ASCAR, instituição de assistência técnica a produtores, dão conta de que os alagamentos na Serra Gaúcha destruíram ao menos 500 hectares de vinhedos. O número pode crescer conforme produtores reportem suas perdas à entidade, mas os danos podem chegar a algo perto de 2% dos cerca de 44 mil hectares ativos no Rio Grande do Sul.
A situação dos produtores do estado só não é pior porque a colheita da safra de 2024 já foi realizada entre dezembro e março. As uvas já estão em processo de vinificação para que os vinhos do ano sejam engarrafados ou postos para amadurecer.
Durante o fim do outono e o inverno, os vinhedos passam por um período de dormência. Somente em agosto as videiras começam a recuperar a parte vegetativa, para que a frutificação da próxima safra se reinicie por volta de novembro.
“A produção de suco e vinho não está abalada do ponto de vista de estoque. […] Mas há famílias que perderam tudo, e estamos nos preparando para estimulá-los a tocar o negócio à frente”, afirma Luís Bohn, gerente técnico da Emater/RS.
Além de restabelecer os produtores, o mercado de vinhos brasileiros terá de lidar também com a recuperação das estradas para escoamento da produção. Segundo o Ministério dos Transportes, há pelo menos 62 trechos de estradas e pontes que precisarão ser reconstruídos no RS, a um custo estimado em R$ 1,2 bilhão para início de reparos.
Por fim, está paralisada a chegada de visitantes para o enoturismo em uma das regiões preferidas para quem quer conhecer a produção de vinhos brasileiros. Em 2023, o segmento movimentou R$ 3 milhões — R$ 1,7 milhão só em Bento Gonçalves. (saiba mais abaixo)
Hora de se reerguer
Flávio Rotava, produtor de vinho
Fábio Tito/g1
Quem sofre com os prejuízos tenta agora se reerguer em meio aos trabalhos de buscas pelos desaparecidos. Rotava é vizinho e cresceu junto de Artemio Cobalchi e Ivonete, casal de idosos morto em deslizamento no começo de maio. Uma das filhas, Natalia, está desaparecida, enquanto a outra, Marina, busca o corpo da irmã.
“É difícil, mas tem que ter os pés no chão, cabeça olhando para o ar para ir em frente e seguir. Agora é o momento de começar a construir, resgatar as pessoas que estão ainda como nós, mas que não estão mais conosco. Tentar resgatar, se unir todo mundo com uma missão, ajudar… Se ajudar para seguir”, lamenta Flávio, que faz um apelo a quem quiser ajudar.
“O Rio Grande do Sul só vai se erguer depois dessa tragédia se tiver a ajuda do país inteiro com ações de adquirir produtos gaúchos para manter os empregos, para manter as transportadoras, para poder fazer a economia girar de novo”, diz.
Nesta semana, produtores e revendedores do Rio Grande do Sul lançaram campanhas pulverizadas para incentivar a compra de vinho gaúcho — seja em benefício do próprio setor ou para ajudar regiões afetadas pelas cheias.
A campanha “Solidariza RS”, por exemplo, fechou parceria com 18 grandes vinícolas do Sul que disponibilizaram 2 mil garrafas que tiveram a receita destinada para instituições que estão auxiliando as regiões mais afetadas pelas enchentes. A ação arrecadou R$ 200 mil.
Outras, como a campanha #CompreVinhoGaúcho, da Brasil de Vinhos, pede que os consumidores deem uma chance ao vinho do estado, tanto para que os produtores aumentem o faturamento, como para que o consumidor conheça mais rótulos da região.
Mapa mostra a região de Bento Gonçalves
Arte g1
‘Malemá saímos com a roupa do corpo’
Com as águas que não baixam e risco de novos deslizamentos, há produtores que nem conseguiram estimar as perdas.
Inácio Salton, de 63 anos, cultiva uvas para a produção de vinhos na comunidade de Santo Antônio da Paulina, em Bento. Apesar de levar o sobrenome de uma famosa marca da região, ele fornece uvas para a Aurora.
Ele precisou abandonar o local e alugar uma casa à beira da estrada que liga o distrito de Faria Lemos à estrada RS-431. Segundo ele, a Aurora está oferecendo ajuda nos grupos que tem com produtores, que precisam informar os impactos em suas plantações.
As terras de Inácio estão alagadas, e ele já prevê impacto nas uvas, porque a água em excesso piora a qualidade da fruta que será colhida por volta de setembro.
“Nem fui embaixo das parreiras ainda, nem sabemos o que aconteceu. Nem imagino o tamanho do estrago”, conta ao g1.
A família de sete pessoas deixou a casa às pressas e se abrigou com ajuda de amigos.
Inácio Salton, 63 anos, conta que trabalha com uvas desde sempre
Fábio Tito/g1
“Male má saímos com a roupa do corpo, mas está tudo tranquilo. Todos estão bem e salvos”, conta, sem saber quanto pagará de aluguel na casa cedida. “Falaram para a gente vir e depois conversávamos de dinheiro. Vamos ficar uns 15, 20 dias e depois vemos”.
“Como vou falar o quanto fomos atingidos se nem consegui entrar na terra?” diz. Sua torcida é para ter sol e, nesse cenário, dos dias seriam o suficiente para a água deixar o solo e poder calcular mais precisamente o tamanho do prejuízo.
Retomada gradual
Segundo o Instituto de Gestão, Planejamento e Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado do Rio Grande do Sul (Consevitis-RS), o Complexo Econômico da Uva e Derivados representa cerca de 2% do PIB do estado do Rio Grande do Sul, com atividade vinda de 550 vinícolas e cooperativas.
Uma reunião do Consevitis-RS aconteceu nesta terça-feira (13), para que vinícolas afetadas compartilhassem os impactos das chuvas e pensassem em ações integradas para ajudar a recuperação. Como mostrou o g1 neste fim de semana, os efeitos na economia do Rio Grande do Sul ainda são calculados com dificuldade em meio à tragédia.
Além de um panorama mais claro sobre o mercado, uma preocupação latente dos produtores é com o escoamento do vinho já pronto para o comércio e com o turismo na região.
“A maior parte das empresas está operando normalmente, mas há um impacto muito grande nas vendas no mercado local e no turismo. Essa retomada vai ser lenta e gradual”, afirma Daniel Panizzi, presidente da União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra).
Daniel diz há uma limitação de distribuição dos produtos por Porto Alegre, com a interdição completa do Aeroporto Salgado Filho. A alternativa tem sido o envio pelo aeroporto de Caxias do Sul. Por terra, as transportadoras têm procurado rotas alternativas, em virtude das interdições.
“É um cenário preocupante para restaurantes e hotéis que dependem da cadeia do vinho. Precisamos de força para recuperar a infraestrutura que foi gravemente afetada pelas enchentes e pelas chuvas”, diz.
Restaurante fechado e funcionários em férias coletivas
A família de Bruna Cristofoli tem uma vinícola, um vinhedo de uvas finas e um restaurante em Faria Lemos que fica no limite dos bloqueios por conta dos deslizamentos de terra. Por conta da tragédia no estado, os funcionários estão em casa.
“Tínhamos uma receita significativa vinda do enoturismo, que está comprometido. Nosso restaurante atende 99% pessoas da Grande Porto Alegre e foro do estado. A gente deu férias coletivas para os colaboradores porque não temos histórico de atender pessoas da região”, conta.
Bruna Cristofoli em frente a parreira e ao restaurante da família
Arquivo pessoal
Os prejuízos são de 100% da receita do restaurante, que não recebe turistas, e de 40% no faturamento das vendas de vinho no varejo.
“Estamos com a loja fechada, as pessoas têm medo de chegar até aqui, e o aeroporto está fechado. Está um clima de muita insegurança para andar nas rodovias, a chuva que não para”, diz Bruna, que repete o apelo no Flávio Rotava.
“O nosso pedido é só um: compre vinho gaúcho e quando a situação acalmar, voltem a viajar para o Rio Grande do Sul”.
Resgate de desaparecidos soterrados em Bento Gonçalves, no RS

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