Rudinei Silva dos Santos, comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado do Sul, fez em torno de 250 atendimentos durantes os temporais e cheias que atingem o Rio Grande do Sul desde o fim de abril. Rudnei Santos é um dos bombeiros que trabalharam incessantemente desde o início das enchentes
FERNANDO OTTO/BBC
O relógio marcava 18h30 e a escuridão era total na cidade completamente alagada de Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul. Por conta das enchentes, toda a distribuição de energia foi interrompida.
No telefone, a voz desesperada da filha pede para que os bombeiros resgatem a mãe dela, que está acamada e inconsciente dentro da casa tomada pela água.
Quartel de bombeiros também ficou alagado em Eldorado do Sul.
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Cada minuto era crucial porque o nível da água subia constantemente e deixava a situação ainda mais dramática.
A filha não estava no mesmo imóvel, mas acionou o resgate após ouvir da cuidadora da mãe que a água na rua já estava na altura da cintura. Assim que recebeu o chamado, Rudinei Silva dos Santos, comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado do Sul, apanhou uma lanterna, vestiu uma roupa de mergulho e partiu com um barco a remo com sua equipe para o resgate que durou cerca de duas horas.
O município foi proporcionalmente o mais afetado pelas inundações no Rio Grande do Sul. Segundo o governo, Eldorado do Sul chegou a ter 98% de sua área alagada durante as enchentes – apenas a rodovia não foi afetada.
A área urbana ficou completamente debaixo d’água, inclusive a casa de Rudinei, que precisou dormir algumas noites no terceiro andar do prédio da prefeitura. A sede da administração municipal se tornou a sede da Defesa Civil e até dos bombeiros depois que o quartel também ficou debaixo d’água.
O prédio abrigou até mesmo uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) após os hospitais e postos de saúde serem tomados pela água.
‘A enchente começou’
Rudinei relatou à BBC News Brasil o que passou na tragédia das inundações. Confira a seguir:
“Antes de tudo acontecer, tínhamos a previsão das autoridades de que iriam subir os níveis do Lago Guaíba e, consequentemente, haveria uma nova enchente aqui no nosso município. Então, dois dias antes de começar a inundar as primeiras ruas, nós já emitimos alguns alertas e vídeos explicativos para que as pessoas não ficassem esperando.
A enchente começou. No segundo dia de remoção das pessoas das áreas alagadas, havia muitos pedidos. A cada minuto, havia três pedidos ou mais.
Às 18h30 chovia bastante e chegou um chamado via telefone. Nossa colega que fez o atendimento telefônico relatou que havia a necessidade de fazer um resgate de uma pessoa acamada, uma pessoa idosa que necessitava de atendimento especial porque ela não tinha nenhum tipo de movimento.
Então isso nos fez pensar em como chegar até aquele local e como entrar. Quando a gente recebe um chamado, a gente já vai imaginando todas as situações que a gente pode se deparar, qual é o tipo de equipamento que a gente pode levar, quais as pessoas que a gente necessita. Quantos bombeiros a gente vai precisar no local, se a embarcação consegue chegar e se vamos precisar de uma viatura leve ou pesada.
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Na triagem via telefônica com a filha dessa pessoa, que estava em outra cidade, vimos que ela não sabia exatamente como estava a situação, o que é mais uma questão que a gente tem que levar em consideração. Porque a informação que ela está nos passando por telefone não é de quem está no local, então isso pode ser uma coisa boa ou pode ser uma surpresa que talvez a gente perca um pouco de tempo, pois a gente não sabe exatamente qual a magnitude e grandeza desse atendimento.
Mas como a pessoa nos relatou que a mãe dela, no caso, era uma pessoa de idade em estado terminal, sem movimentos e dependente de uma cuidadora que também já tem certa idade, ela não conseguiria ir para um local mais seguro sozinha.
Rudnei tem ajudado famílias ilhadas levando alimentos.
FERNANDO OTTO/BBC
Nessas condições, fomos até o local. Lá já estava sem energia elétrica e praticamente toda a cidade já estava às escuras. Chegamos com a nossa ambulância até próximo a esse local. Ali, colocamos nossa embarcação na água. Um barco sem motor. Fomos remando até a casa.
Nos identificamos como bombeiros e entrei primeiro para verificar a situação. A gente faz uma análise de toda a cinemática e aí retornamos para a equipe.
Como a gente verificou que seria possível passar o colchão pela porta onde ela estava, entramos e deixamos o barco ancorado próximo à entrada da casa.
Quando chegamos ao local, a altura da água já estava encostando no colchão e ele já estava flutuando um pouco. A pessoa recebia oxigenoterapia e estava ligada a aparelhos para tomar medicamentos.
A vítima era uma senhora, que tinha em torno de 70 anos, e se alimentava por sonda, além de não se movimentar. Pelo tempo acamada, ela tinha os membros muito enrijecidos, o que não facilitava a mobilidade. A gente teve que colocar um cobertor por baixo dela, com muito cuidado, vários bombeiros que estavam submersos a suspenderam.
Colocamos ela em cima do colchão novamente e fomos puxando o colchão sobre a água, cuidando para que ele não afundasse.
A cidade de Eldorado do Sul ficou totalmente alagada.
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O desafio seguinte foi passar pela porta porque ela era bem estreita. Então apertamos um pouco a lateral do colchão para que ele dobrasse levemente e pudesse passar.
Com todo o cuidado, a gente fez esse movimento de lateralização sempre com cuidado com o tubo de oxigênio dela.
Levá-la de barco até o hospital também foi um desafio, um desafio colocá-la em cima do barco. Sem dizer que esse não é o meio mais adequado para fazer o transporte de uma vítima com essa necessidade. Fizemos o caminho até a ambulância, que nos aguardava numa área seca, muito cuidado, pois estava completamente escuro e com as águas turbulentas.
Levamos ela para o posto de saúde e a deixamos aos cuidados dos médicos. A maioria das pessoas que estavam nessas condições foi transferida para Porto Alegre, via terrestre ou por aeronaves.
Com certeza ela foi transferida para Porto Alegre porque o pronto atendimento estava recebendo muita demanda, então não poderia ficar com tantas pessoas nessas condições.
Fizemos tudo isso tendo que proteger uma pessoa que não consegue responder o que está acontecendo com ela. Uma vítima que não pode te dizer onde está doendo. Tivemos apenas os relatos da cuidadora dessa idosa.
Essa ocorrência nos causou um desgaste físico e emocional muito grande, por ser um trabalho noturno, sem praticamente nenhuma iluminação. Foi perigoso e bem complexo. Demandou bastante trabalho da equipe.
Foram cinco bombeiros envolvidos, além da equipe da ambulância.
É difícil quantificar quantos resgates eu fiz nessa operação das enchentes porque foram inúmeras viagens de barco, indo aos bairros e voltando até o local de desembarque. Mas nós temos uma estimativa de que toda a equipe dos Bombeiros Voluntários de Eldorado do Sul socorreram em torno de 4 mil pessoas.
Como eu trabalho como comando na linha de frente, acredito que fiz em torno de 250 atendimentos.
Nós tivemos várias embarcações e motores que se danificaram devido ao grande fluxo de resgates e também por conta do grande número de obstáculos submersos. Havia veículos, madeira, galhos e todo o tipo de material debaixo d’água e isso acaba dificultando a navegação. Por muitas vezes, tínhamos que parar a operação, tirar o motor e limpar antes de continuar.
Se ele quebrasse, a gente tinha que parar e consertar. Sem dúvida, as enchentes foram a maior ocorrência que a gente já enfrentou. Porque quando tu vai num combate a incêndio, num acidente veicular é uma operação pontual que demanda pouco tempo.”