Sem hospital, escola ou quartel: a cidade que ficou completamente sob a água nas enchentes no Sul


Reportagem da BBC News Brasil visitou Eldorado do Sul, cidade de cerca de 40 mil habitantes que teve 100% sua área urbana alagada e precisou ser evacuada Vista de uma casa inundada em Eldorado do Sul, Rio Grande do Sul, no dia 9 de maio
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Uma cidade inteira alagada: sem água, sem luz, sem comunicação. Com cerca de 40 mil habitantes, o município de Eldorado do Sul está entre os mais afetados pelas inundações no Rio Grande do Sul.
Segundo o governo, 98% da cidade foi inundada pelas águas que vieram do Rio Jacuí e desceram para o Lago Guaíba, fazendo com que todos os habitantes precisassem evacuar a região.
A reportagem da BBC News Brasil foi até Eldorado do Sul entender o impacto da enchente na vida dos moradores e em todos os setores do município.
O bombeiro Rudinei Silva dos Santos conta que sua equipe percebeu que a cidade seria atingida no dia 30 de abril, quando um município a cerca de 30 km começou a inundar.
“Ficamos de sobreaviso, e passamos a informar a população com carro de som e posts nas redes sociais. A instrução era que saíssem por meios próprios antes das casas serem tomadas pelas águas”, diz ele, que é presidente comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado.
No dia 1º de maio, os primeiros bairros da cidade, situados em níveis mais baixos, começaram a inundar.
Vista aérea das enchentes em Eldorado do Sul, Rio Grande do Sul, tirada em 9 de maio
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‘Recebíamos 100 chamados a cada 10 minutos’
Os pedidos de ajuda se multiplicavam conforme a água começou a subir. A demanda dos moradores, lembra Rudnei, era muito mais alta do que a equipe, com apenas 20% das embarcações funcionando, conseguia atender.
“Recebíamos 100 chamados a cada 10 minutos, era humanamente impossível atender a todos. Priorizamos salvar as vidas das pessoas e seus animais e passamos a receber ajuda de alguns moradores com barcos. Em torno de duas horas a água subiu um metro e meio em todo o município.”
As pessoas resgatadas eram levadas para o prédio da prefeitura, que por ser em uma área mais alta da região, era o local considerado mais seguro.
“Mas no dia 4 de maio, a água subiu em torno de um metro dentro do prédio. Tivemos que começar a fazer a retirada dessas pessoas para a única área seca que temos no município, que era a BR 290.”
Rudnei Silva dos Santos, presidente comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado
FERNANDO OTTO/BBC NEWS BRASIL
‘Operação de guerra’
Com toda a população e seus animais na estrada, o corpo de bombeiros passou a pedir apoio de outros municípios para abrigar as pessoas.
Mesmo assim, Rudnei conta que não foi possível ajudar a todos, e mais de 15 mil pessoas ficaram dormindo na via que liga diversas cidades da região e países vizinhos.
“Fizemos o isolamento da rodovia junto com a Polícia Rodoviária Federal e os resgates continuaram. Entravam mil chamados por hora nos nossos telefones. Pediam ajuda para pessoas acamadas, pessoas com deficiência, idosos, crianças, gestantes… Foi realmente uma operação de guerra nesse primeiro momento.”
Rudinei lembra que é a terceira enchente que a cidade enfrenta em menos de um ano.
“Vários dos nossos voluntários também perderam suas casas e mesmo assim, com suas famílias desalojadas, eles continuaram firme no propósito. A prioridade é salvar vidas, os bens materiais a gente reconquista.”
Depois de alguns dias, a água já baixou em alguns pontos do município, e ao menos por enquanto, o prédio da prefeitura voltou a ser abrigo para parte da população.
A previsão do INstituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul aponta que o nível do Guaíba subirá significativamente nos próximos dias e quebre um novo recorde ao atingir a altura de 5,5 metros. No auge da cheia na última semana ele chegou a 5,33 metros.
Vista aérea das enchentes em Eldorado do Sul, Rio Grande do Sul, tirada em 9 de maio
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Sem internet, sem luz, sem comunicação
Quando Eldorado do Sul ficou sem energia, o cenário se complicou ainda mais.
Rudnei conta que, sem internet, as pessoas procuravam seus familiares e os pedidos de resgate chegavam, às vezes, com 24 horas de atraso.
“Isso também atrasava os atendimentos. Demorávamos duas, três horas para ir e voltar de um bairro mais afastado, mas às vezes, chegando lá, a família já tinha conseguido sair. A informação não tinha chegado para nós, e claro, precisamos averiguar cada chamado.”
Eduardo Griza, também bombeiro voluntário, veio de Irani, no estado de Santa Catarina, para ajudar nos resgates em Eldorado do Sul.
Já na estrada, Eduardo conta que a equipe já notou os primeiros sinais de dificuldade, com pontos de alagamentos e deslizamentos de terra
“Não sei se tem uma dimensão para dizer tudo que aconteceu aqui: é tanta água, tanta destruição… Uma catástrofe.”
O bombeiro diz que é preciso esforço para cumprir o ideal de não se envolver emocionalmente com as ocorrências.
“Tentamos manter a calma, se manter estabilizado para não se abalar. Mas resgatar pessoas que estavam ilhadas com suas famílias e cachorros, e ver a destruição das casas, ver que eles tentavam pegar seus pertences, mas não tinham mais nada… Essa parte deixa a gente bem sentido.”
Ilhada e com toda a sua infraestrutura comprometida, a cidade ficou incomunicável nos primeiros dias da crise. Nesta segunda-feira (13/6), o Instituto Cultural Floresta e o grupo de voluntários Exército Invisível doará para o município uma antena capaz de fornecer dados sem depender das companhias telefônicas.
“Essas antenas Starlink vão funcionar com dados ilimitados enquanto durar essa calamidade. Eldorado é uma das cidades que, no começo da crise, ficou incomunicável”, diz Gabriel Larré, um dos idealizadores do projeto que também vai doar outras três antenas semelhantes a hospitais na região.
‘Era tudo lama e fedor’
Eram três da manhã quando Priscila Grener, 33, precisou sair de casa com seus três filhos.
“Fiquei apavorada. Passaram de moto gritando que era para todo mundo sair, que a água estava subindo. Peguei umas roupinhas, só o que deu.”
Nos primeiros dias, a família de Priscila se abrigou em uma empresa desativada.
“Lá não tinha comida e dormíamos em cima de um papelão. Eu e as crianças tomávamos banho gelado em um posto de gasolina e só nos alimentamos com algumas bolachass que ganhamos.”
Agora, Priscila e seus filhos estão no prédio da prefeitura, onde ela considera mais confortável.
Priscila com dois de seus dois filhos
FERNANDO OTTO/BBC NEWS BRASIL
Quando a água começou a baixar, ela conseguiu ir até sua casa para avaliar o estrago que a inundação tinha deixado.
“Estava horrível, era tudo lama e fedor. Quando formos recomeçar, a primeira coisa que penso é: colchões e um cantinho para colocar as coisinhas dos meus filhos”, diz.
O prédio também é o atual alojamento do prefeito Ernani Gonçalves (PDT), que está dormindo em seu gabinete com a família.
“Nenhum morador da cidade pode se dizer que passou sem prejuízo ou sem ter sido atingido por essa cheia. A cidade foi 100% alagada. O prefeito está lá até hoje, gerenciando essa catástrofe a partir do terceiro andar do prédio”, diz Roseli Fagundes de Souza, que é enfermeira e tem o cargo de responsável técnica de enfermagem na cidade.
Roseli, natural da cidade de Porto Alegre, assumiu o cargo em outubro, e desde então, já viu duas enchentes tomarem Eldorado do Sul – dessa vez, em uma dimensão muito maior.
“A gente não perdeu só o nosso local de trabalho, mas 90% das pessoas que trabalham na cidade, perderam também suas casas, suas histórias.”
Roseli Fagundes de Souza, enfermeira e responsável técnica de enfermagem em Eldorado do Sul (RS)
FERNANDO OTTO/BBC NEWS BRASIL
Hospital improvisado
“Nós da área da saúde, não tínhamos para onde ir e nem onde se esconder. Viemos para o prédio da prefeitura e trabalhamos sob condições muito difíceis: molhados, ilhados, sem comunicação.”
Apesar das condições, Roseli conta que a equipe não parou de trabalhar e tem dado seu máximo com os recursos disponíveis.
“Alguns profissionais da saúde ficaram quatro dias aqui dentro, sem ter como sair e atendendo a população que chegava com hipotermia, febre, dor de garganta, cortes… Na nossa estrutura mínima de pronto-atendimento que levantamos dentro de um prédio que é totalmente administrativo.”
O local de trabalho da equipe de saúde é descrito por Roseli como uma pequena sala de emergência com um respirador e alguns leitos.
Sala de emergência improvisada dentro do prédio da prefeitura de Eldorado do Sul (RS)
FERNANDO OTTO/ BBC
Para chegar ao atendimento, é preciso subir um lance de escadas.
“Isso dificulta para alguns pacientes, mas é o lugar mais seguro que a gente tem. Nenhuma rua da cidade ficou seca. E ainda estamos com esse alerta iminente de um repique, de uma nova enchente.”
Roseli conta que as nove unidades de saúde da cidade foram atingidas de alguma forma.
“Visitamos algumas das unidades hoje, e além de muitos danos pela água, os locais foram saqueados. Levaram remédios, equipamentos, cadeiras, refrigeradores…”
A enfermeira diz que, com a possibilidade de uma nova enchente nos próximos dias, ainda não foi possível fazer um balanço das perdas materiais, mas já é possível dizer que as equipes vão precisar de muitas doações.
“Tem muita gente tentando ajudar, mas precisamos de muito mais do que comida e remédios. Vamos precisar de máquinas para conservar vacinas, artigos médicos, computadores, respiradores, toda uma estrutura.”
Para Roseli, a ideia de reconstrução nos próximos meses causa medo.
“Eu choro em casa com a minha família, mas a hora que eu abro aquela porta eu sou a Roseli, enfermeira. A gente coloca a armadura porque precisamos dar o que eles precisam.”
“Daqui a pouco vamos ter que caminhar com nossas pernas, e isso é uma coisa que me assusta ainda. A gente nunca passou por isso. Eldorado nunca havia sido atingida nessa proporção. Eu espero que a gente continue tendo essa ajuda para se reerguer.”
A enfermeira lembra chorando o impacto que sentiu ao ver pessoas desabrigadas e desalojadas.
“Eram milhares de pessoas andando na estrada, sem ter para onde ir, procurando comida para seus filhos… Eu atendi uma pessoa que disse assim: ‘Eu sei que eu preciso sair, mas pra onde eu vou? Eu não tenho mais nada.'”
“São cenas assim que não vão sair da minha memória. Jamais, jamais.”
“A gente desmorona, mas juntamos os caquinhos, vestimos a armadura e vamos em frente. A gente sabe que a gente vai conseguir se reerguer. Só que nesse começo vai ser bem difícil.”
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