Cresce o apoio entre as nações da África e do Caribe para a criação de um tribunal internacional sobre atrocidades que remontam ao comércio transatlântico de pessoas escravizadas. No centro dos esforços, os Estados Unidos apoiam um painel da ONU para tratar sobre o assunto.
Foi proposto no ano passado um tribunal criado especificamente para crimes contra a humanidade. Agora, a ideia ganhou força dentro de um movimento mais amplo de reparação da escravidão.
Formalmente recomendada em junho pelo Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Pessoas de Ascendência Africana, a ideia de um tribunal especial foi explorada em órgãos regionais africanos e caribenhos, diz Eric Phillips, vice-presidente da comissão de reparações de escravidão da Comunidade do Caribe (Caricom), que reúne 15 Estados-membros.
O escopo de qualquer tribunal ainda não foi determinado, mas o fórum recomendou, em um relatório preliminar, que ele deveria tratar de reparações por escravidão, apartheid, genocídio e colonialismo.
Os defensores, inclusive dentro da Caricom e da União Africana, que agrupa 55 nações em todo o continente, estão trabalhando para obter um apoio mais amplo para a ideia entre os membros da ONU, afirma Phillips.
Um tribunal especial da ONU ajudaria a estabelecer normas legais para reivindicações complexas de reparações internacionais e históricas, dizem seus defensores. Os críticos das reparações argumentam, por outro lado, que os países e as instituições atuais não devem ser responsabilizados pela escravidão histórica.
Até mesmo os favoráveis, porém, reconhecem que estabelecer um tribunal internacional para a escravidão não será fácil. Há “enormes obstáculos”, disse Martin Okumu-Masiga, secretário-geral do Fórum de Juízes e Juristas da África (AJJF). “Essas coisas aconteceram há muitos anos, e os registros históricos e as evidências podem ser difíceis de acessar e até mesmo de verificar.”
Questionado sobre a ideia de um tribunal, um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido reconheceu o papel do país na escravidão transatlântica, mas disse que não há planos de pagar indenizações. “Os erros do passado devem ser resolvidos aprendendo as lições da história e enfrentando os desafios de hoje”, disse o porta-voz.
No entanto, os defensores das reparações alegam que os países e as instituições ocidentais que continuam a se beneficiar da riqueza gerada pela escravidão devem ser responsabilizados, principalmente devido aos legados de discriminação racial ainda existentes.
Um tribunal ajudaria a estabelecer um “registro oficial da história”, diz Brian Kagoro, um advogado do Zimbábue que vem defendendo reparações há mais de duas décadas.
O racismo, o empobrecimento e o subdesenvolvimento econômico estão ligados às consequências de longa data da escravidão transatlântica dos Estados Unidos para a Europa e o continente africano, de acordo com estudos da ONU.
“Esses legados estão vivos e bem vivos”, afirma Clive Lewis, deputado trabalhista britânico e descendente de pessoas escravizadas na nação caribenha de Granada. “Os negros vivem em áreas mais pobres e mais poluídas, têm dietas piores, têm resultados educacionais piores… porque o racismo estrutural está profundamente enraizado”.
Para Phillips, da comissão da Caricom, o estabelecimento de um tribunal de reparações teria que ocorrer por meio do sistema das Nações Unidas e incluir conversas com países como Portugal, Reino Unido, França, Espanha, Holanda e Dinamarca. São nações que estavam envolvidas no comércio de pessoas escravizadas para o Caribe e outras regiões.
A ONU passou a apoiar as reparações, já usadas em outras circunstâncias para compensar grandes dívidas morais e econômicas, como para as famílias dos sobreviventes do Holocausto.
“Pedimos estruturas de justiça reparatória para ajudar a superar gerações de exclusão e discriminação”, disse o secretário-geral da entidade, António Guterres, em seus comentários públicos mais diretos sobre a questão. O gabinete de Guterres, no entanto, não respondeu a um pedido de comentário sobre um possível tribunal.
A pressão por um tribunal decorre, em parte, da crença de que as reivindicações precisam ser consagradas em uma estrutura legal, disse Okumu-Masiga, do Fórum de Juízes e Juristas da África.
Várias instituições, inclusive a União Europeia, concluíram que a escravidão transatlântica foi um crime contra a humanidade. Após os julgamentos de Nuremberg na década de 1940, a ONU formalizou a estrutura de tribunais especiais para investigar crimes internacionais graves contra a humanidade.
Desde então, a ONU estabeleceu dois: um para julgar os responsáveis pelo genocídio de Ruanda em 1994 e outro para julgar os crimes de guerra cometidos na antiga Iugoslávia na década de 1990.
Okumu-Masiga disse que os países afetados, os descendentes de pessoas escravizadas e os grupos indígenas poderiam ser possíveis demandantes, enquanto os réus poderiam incluir nações e instituições com vínculos históricos com a escravidão ou até mesmo descendentes de escravizadores.
Movimento de reparações
Do século 15 ao final do século 19, pelo menos 12,5 milhões de africanos escravizados foram transportados à força, principalmente por navios europeus, mas também por navios de bandeira americana e brasileira, e vendidos como escravos.
Antes de pressionar pela abolição da escravidão, o Reino Unido transportou cerca de 3,2 milhões de pessoas, o país europeu mais ativo depois de Portugal, que escravizou quase 6 milhões.
Aqueles que sobreviveram à viagem brutal acabaram trabalhando em plantações sob condições desumanas nas Américas, principalmente no Brasil, no Caribe e nos Estados Unidos, enquanto outros lucraram com seu trabalho.
Os pedidos de reparação começaram com as próprias pessoas escravizadas. Posteriormente, o movimento obteve apoio de grupos tão variados quanto o líder dos direitos civis dos EUA Martin Luther King e os rastafáris do Caribe.
O que as reparações consistiriam na prática ainda é alvo de debates. Alguns, inclusive nos Estados Unidos, pressionaram por pagamentos individuais aos descendentes de pessoas escravizadas. A Caricom, em um plano de 2014, solicitou o cancelamento da dívida e o apoio das nações europeias para enfrentar a saúde pública e as crises econômicas.
“Isso é algo que esse movimento nunca viu antes”, afirma Okumu-Masiga.