Um presidente hippie – 25/02/2022 – Normalitas

Barcelona, sexta-feira nublada.

Tomando café numa praça perto de casa, acho graça nos pequenos que saem das escolas.

Hoje eles levam disfarces especiais: aqui vejo passar uma bailarina com asas de borboleta, ali um pirata júnior com um saco de purpurina, adiante uma fileira de miniencapuzados de vermelho à la Casa de Papel.

Demoro pra me ligar que é Carnaval, óstia!

Difícil se focar no caráter liberador-catártico-brincalhão-reflexivo das festas, considerando a guerra que acaba de eclodir, a pandemia que ainda espia, o medo do porvir.

Mas –pensando bem –

Termino o café, estendo a mão pra pegar a varinha de condão com pompom branco da fadinha que dá um rasante ao lado da minha mesa. Devolvo seu alvo instrumento com um sorriso, quase com lágrimas brotando da garganta, da China, do além. Nos entreolhamos por um breve momento que ela não recordará. Eu, sim.

***

Enquanto a Espanha resgata às pressas centenas de espanhóis da Ucrânia, penso no choque que levei recentemente (= esta semana) ao ler uma história louca sobre a suposta juventude do presidente russo.

Chego tarde, porque o relato é de 2017. Um querido amigo bluesman texano, sincronizado cas coisa da vida e a iminência da guerra, é quem me levou a ele.

Foi publicado em forma de diário/confissão num site chamado Daily Kos por um alias chamado “freewayblogger”. O título, literal: “Em 1982, eu estava vendendo ácido na tumba de Jim Morrison e foi assim que conheci Vladimir Putin”.

Pá.

Na época, da noite pro dia, esse revelador textículo em primeira pessoa correu mundo, atraindo a atenção de leitores, imprensa graúda e até moguls sortidos de Hollywood e alhures como Michael Moore, Time-Warner e Netflix, doidos pra comprar a história e transformar em filme ou seriado.

Excelente texto, louca história. Mandei até pra uns amigu jornalistas. Sem apurar demais.

Basicamente, o autor contava ter topado com um jovem Putin e sua guitarra folk diante da tumba de Jim Morrison, no Père Lachaise de Paris, meca da peregrinação hippie e pós-hippie.

“Vlad” possuía já então “aquele olhar… aquela maneira de olhar através de você, para um além desconhecido e distante”. Sua presença etérea e talento musical teriam conquistado o autor, que o convidou pra colar em sua casa enquanto o flatmate estava fora.

Putin, um romântico, que tocava Donovan e Leonard Cohen como os anjos. Quem diria. Sua interpretação de “Let It Be”, conta o autor, era de arrepiar. Cabelos cacheados, poucas palavras. Uma aura circunspecta, sensível e magnética.

Uma foto, publicada junto com o diário, supostamente mostra o tal:

Eu devo ter ficado vidrada nessa foto uns bons minutos. Na minha cabezota o Vlad parecia até o Garfunkel. É-não-é-quem-será. Strange feelings.

O jovem teria descolado até uma garota em sua breve estadia em Paris, Lisbeth. A única coisa que não fazia era tomar psicodélicos.

Até o dia em que o autor o convenceu. E aí…. mais não conto, pra não estragar a história. Leiam, leiam.

***

O autor do relato, Patrick Randall, um artista visual e militante pacifista-progressista-anti-GOP/antirepublicano (ele se autointitula um “protestante de esquerdas”) que se dedica a pregar cartazes com dizeres combativos em pontes, estradas e outros lugares públicos de grande visibilidade nos arredores de LA, confessou de próprio punho que a história era fake.

(Cartaz de Patrick Randall. Reprodução – freewayblogger.com)

Não só eu fui enganada: todos os supracitados e cadeias como a ABC também tavam crentes em determinado momento de que o a história do presidente hippie era real.

Claro, alguns detalhes não combinam. Como a data dos acontecimentos, que nos faz pensar –bom, 1982, Putin teria 30 anos, meio véio pra um hippie adolescente, não? (sem preconceitos, mas vejam bem)

Também a ideia de Putin tomando um doce é, perdão, demais da conta.

O próprio Randall confessou que escreveu o texto sem imaginar essa repercussão toda. Sua ideia original era criar uma sátira, não um engodo coletivo.

Mas, vendo os comentários nas redes, dá pra entender por que muitos nos deixamos levar, mesmo um pouquito.

Compartilhamos sentimentos semelhantes: poxa vida, quem dera fosse real. Torcíamos. O famoso m’engana que eu gosto. “Vlad deveria ler isso”, escreveu um leitor. “Em algum lugar há um caminho não tomado em sua vida…”.

Com a guerra, esse Absurdo, ganhando franco terreno, mais do que nunca a nostalgia do que não foi e nunca poderá ser dói no coração. Oxalá Putin tivesse tomado um doce, se casado com a Lisbeth e lançado um disco à la Crosby, Stills, Nash & Young.

Ah: o cara das fotos, claro, não é baby-Vlad, mas um amigo de longa data. Quando a história viralizou, Randall conta que pensou, “taquepariu: se a ABC achou, significa que o Kremlin também… tive aquele frio no estômago que a gente sente quando percebe que as coisas estão saindo de controle”. Por sorte, diz, o nome do amigo não aparece em nenhum lugar. E Randall, se desde então foi hackeado ou investigado, de todas as formas segue livrelevesolto. Pheeew.

***

Antes que a fadinha se fosse, pedi a ela que fizesse uma mágica.

Que mágica você quer?

Um coelhinho branco.

Em dúvida, revirou os olhinhos pretos. Terminou dizendo: aaaah, isso não consigo.

Então outro pedido. Só mais um.

U quê.

Que hoje seja um dia lindo.

Ela assentiu com a cabeça, contente, ainda que com uma pitada de dúvida. Brandiu a varinha e arrematou a magia com o pompom na minha cabeça, plim.

Pronto!

Obrigada!

De nada –e se foi com a manhã. Xau, fadinha, luz del mañana, biografia en construcción. Até a próxima casualidade, e que seja feliz.

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