Uma a uma, grandes igrejas que estiveram com Jair Bolsonaro (PL) em 2018 vão emitindo sinais de que tamanho entusiasmo pode não se repetir neste ano. O recuo é associado ao bom desempenho eleitoral de Lula (PT), mas não só.
Quem atua nos bastidores do segmento avalia: claro que a perspectiva de uma vitória petista, talvez até mesmo no primeiro turno, assusta líderes evangélicos que têm por hábito manter boas relações com o governante da vez.
Ninguém esquece que o próprio Lula foi agraciado com aplausos de pastores que anos depois, na eleição de Bolsonaro, diriam-se alérgicos a tudo o que ele representa, usando como justificativa o avanço de pautas progressistas (dos direitos LGBTQIA+ ao aborto) e esquemas de corrupção atribuídos ao PT.
Mas há também um sentimento dúbio sobre Bolsonaro, um católico não praticante que melhor do que ninguém soube sintonizar com as demandas morais do grupo e cumpriu a promessa de emplacar um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal, André Mendonça.
Já havia certa insatisfação com a conduta presidencial na mais grave crise sanitária do século, como a recusa em se vacinar contra a Covid —não se tem notícia de um pastor de alcance nacional que não tenha se imunizado.
A performance nas pesquisas de intenções de voto, que o colocam bem atrás de Lula, ajudou a criar um clima de “bote salva-vidas”, nas palavras de um pastor que já integrou comitivas evangélicas ao Palácio do Planalto bolsonarista.
Ninguém quer falar às claras sobre a possibilidade de desembarcar do bolsonarismo, até para não virar alvo de colegas hábeis em incitar turbas evangélicas contra desertores —o mais citado é Silas Malafaia, ex-apoiador de Lula que virou um dos mais vocais escudeiros do atual presidente.
Ele gosta de “esculachar”, como diz um conterrâneo seu, sob reserva.
Mas os sinais estariam aí, só não os vê quem não quer.
Primeiro, veio um encontro de Manoel Ferreira, bispo-primaz da Assembleia de Deus Madureira, com Lula, na véspera do feriado de Corpus Christi de 2021. A reunião rendeu um belo retrato para petistas sedentos por uma amostra de que o ex-presidente ainda tem moral com megapastores.
Uma turma bem que tentou contemporizar: Manoel, ex-deputado que chegou a presidir a bancada evangélica durante o segundo mandato de Lula, nos anos 2000, já é quase nonagenário.
Não teria mais tanta influência assim na tomada de decisões. Quem manda mesmo no pedaço são seus filhos Samuel e Abner, sobretudo o primeiro.
Não foi, contudo, a única suspeita levantada de que Madureira não estaria tão firme no endosso a Bolsonaro.
O deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), com inquestionáveis credenciais esquerdistas, foi recepcionado pelos irmãos bispos num dos templos da igreja, que é uma das principais ramificações da Assembleia de Deus, a maior denominação pentecostal do Brasil.
Sob aval de Lula, Freixo está em pré-campanha para o governo do Rio, e a igreja da família Ferreira é uma das mais fortes no estado. Um amigo seu, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, decidiu fazer o meio de campo.
Advogado de Samuel, ele conta que Abner falou abertamente sobre ter um pé atrás com Freixo numa reunião que agregou 90 bispos e 900 pastores da igreja, no fim de 2021.
A má impressão teria encolhido após o pré-candidato trocar de partido, do PSOL para o PSB, de coloração mais amena no degradê progressista.
A pompa com que Freixo foi recebido fortaleceu especulações de que a Madureira estaria estudando uma saída honrosa caso o projeto de reeleição de Bolsonaro vá a pique.
O ex-governador paulista Geraldo Alckmin, provável vice na chapa de Lula, também estaria ajudando nessa costura. O ex-tucano sempre teve boas relações com o nicho, inclusive tinha, em 2018, a simpatia de pastores que só na reta final daquele pleito aderiram a um já fortalecido Bolsonaro.
À Folha o bispo Abner diz que o presidente é o plano “A” da igreja, mas reconhece pastorear “eleitores de Bolsonaro, Lula, [Sergio] Moro, Ciro Gomes, [João] Doria e outros”. “As pessoas são livres para escolher o seu candidato, isso é o pilar, o fundamento, a base da democracia.”
Questionado sobre haver algum empecilho para apoiar candidatos da esquerda, ele primeiro ignorou a pergunta. Quando a Folha insistiu, devolveu apenas: “Deus te abençoe”.
Segundo Kakay, não há uma indisposição, a priori, em voltar a dialogar com o PT, tanto que ele próprio procurou, em nome do cliente Samuel, a campanha do então presidenciável Fernando Haddad, em 2018. “Mas [os petistas] não deram valor à possibilidade”, afirma.
Outros chefes de igreja, como o apóstolo Estevam Hernandes (Renascer em Cristo) e o bispo Robson Rodovalho (Sara Nossa Terra), concordam ser natural que Lula tente reatar pontes.
“Eu sou uma pessoa sempre aberta ao diálogo, o que não representa apoio”, diz Hernandes, que reage assim quando perguntado se Bolsonaro o terá como assecla em 2022: “Prefiro não comentar, sorry”.
Rodovalho diz não detectar “defecções significativas” no núcleo duro de pastores pró-Bolsonaro, alguém “naturalmente alinhado às nossas bandeiras”.
O futuro, contudo, a Deus pertence. “Por enquanto, a gente não consegue enxergar espaço para fazer qualquer tipo de relacionamento com o PT. Infelizmente, porque tem muita fumaça, tá tudo muito nebuloso. Melhor coisa é deixar tudo isso assentar, deixar a sociedade enxergar cristalinamente as propostas [de cada candidato].”
Nas coxias da cúpula evangélica, usa-se uma metáfora vaticanista para se referir a líderes que não vestirão a camisa vermelha antes do tempo, mas começam a abrir canais caso o PT volte ao poder: estariam com um olho no padre e outro na missa.
No próximo dia 8, Bolsonaro deve abrir o Palácio da Alvorada para líderes evangélicos, numa tentativa de demonstrar força no bloco religioso que já foi alheio ao debate eleitoral, mas que hoje é o que mais se articula politicamente no Brasil.
Malafaia, uma das presenças confirmadas, diz não acreditar que muitos de seus colegas vão pular fora do bolsonarismo até outubro. “Você tá acreditando em Papai Noel ou em duende? Qual dos dois? Minha filha, agora é o joguinho da guerra de informação. Eu fico rindo, só isso.”