Distribuidoras de energia e grandes empresas estão se mobilizando para reunir milhões de reais e cumprir uma decisão judicial liminar de primeira instância que o governo não consegue reverter e pode pressionar ainda mais a conta de luz.
O rateio milionário vai bancar um pagamento para a gaúcha Usina Termoelétrica Uruguaiana (UTE Uruguaiana), da Âmbar, empresa de energia do grupo J&F, o mesmo que é dono da companhia de carnes JBS.
A CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), responsável pela contabilidade do setor, já pagou os R$ 19 milhões considerados justos pelo poder público. Mas a Âmbar conseguiu na Justiça o diretor de receber cerca de R$ 740 milhões, e o pagamento precisa ser depositado até 9 de março.
A maior parte dessa despesa vai ser coberta pelas distribuidoras e, quando chegar na conta de luz, vai elevar a tarifa em 0,5%, segundo estimativa da AGU (Advocacia Geral da União). Pela regra, distribuidoras arcam com 70% desse tipo de despesa e grandes consumidores industriais, com 30%.
A área jurídica do governo ainda corre contra o tempo para conseguir suspender a decisão ou conseguir autorização para fazer o depósito em juízo, considerando que, efetuado o pagamento, o dinheiro não vai voltar.
Para entender como a situação chegou a tal impasse é preciso voltar alguns meses no tempo. No auge da seca e da crise de abastecimento, o governo criou uma espécie de programa emergencial para comprar energia de térmicas que estavam fora de operação.
A termelétrica de Uruguaiana, movida a gás, respondeu ao chamado e fez uma oferta. Como o momento era de desespero entre as autoridades, que tentavam evitar apagões, a Âmbar conseguiu um contrato por R$ 2.518,44 por MWh (megawatt-hora) —que serve de base para o cálculo dos R$ 740 milhões que a empresa defende receber.
Foi o segundo maior valor pago pela energia gerada a gás natural contratada pelo governo na crise. A empresa comprometeu-se a fazer entregas nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2021.
Mas a térmica não conseguiu fazer a entrega no prazo previsto. A portaria de número 17, do MME (Ministério de Minas e Energia), que permitiu a compra emergencial de fornecedores térmicos, exigia a entrega mensal de ao menos 50% da energia estabelecida no contrato.
Alegando problemas com fornecedores de gás na Argentina e na Bolívia, a térmica da Âmbar entregou em outubro apenas 6,45% do acertado. O ONS descredenciou a usina e buscou outros fornecedores.
Insatisfeita, após garantir o fornecimento de gás, a Âmbar foi brigar na Justiça para poder entregar o volume de energia acertado no contrato emergencial. A partir do fim de novembro, começou a injetar eletricidade no sistema.
Naquele momento, porém, as chuvas já haviam começado a chegar aos reservatórios, derrubando o preço da energia e levando o governo a desligar usinas mais caras. Por isso, o governo entende que deve pagar R$ 19 milhões, não R$ 740 milhões.
Na ação, a empresa alega que o descumprimento do contrato foi causado por fatores externos não gerenciáveis, já que o governo argentino determinou a suspensão das exportações de gás, impossibilitando a geração em outubro.
Diz ainda que recebeu apoio do governo brasileiro para contornar o impasse junto ao governo argentino, o que indicaria a intenção de comprar a energia de Uruguaiana. Por fim, diz que pagou cerca de R$ 500 milhões por um novo contrato de gás.
A ação judicial afirma que a Âmbar “envidou seus melhores esforços para viabilizar a geração de energia elétrica pela UTE Uruguaiana” e que o cancelamento da oferta nos meses de novembro e dezembro foi “inadequado, desnecessário e desproporcional”.
A Âmbar conseguiu uma primeira decisão favorável em 31 de novembro. A juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª vara da Justiça Federal no Distrito Federal, concordou que a empresa foi vítima de força maior e determinou, em decisão liminar, que a usina poderia fazer entregas referentes aos meses de novembro e dezembro, dentro dos parâmetros previstos no contrato original.
O ONS recorreu em 10 de dezembro e a União, em 13 de dezembro. As demandas já estão na mesa do desembargador Augusto Pires Brandão, do TRF 1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), em Brasília. Mas não houve manifestação até o momento.
A AGU alega que a Âmbar não cumpriu o prazo do contrato e perdeu direito a receber o valor acordado, que equivale a 39 vezes o valor médio do mercado em dezembro, cerca de R$ 67 por MWh. Foi esse o valor utilizado pela CCEE para efetuar o pagamento da Âmbar.
Para a AGU, no momento em que a térmica começou a gerar “não era do interesse do Operador Nacional do Sistema Elétrico, nem da União, utilizar energia da Âmbar”. O risco do suprimento de gás, acrescenta, era da companhia.
Em 31 de dezembro, um despacho do juiz de plantão do TRF 1 pediu urgência no cumprimento da decisão. Como o recurso do poder público não anda na segunda instância, e o prazo está expirando, a câmara determinou que as empresas enviem o dinheiro para fazer o pagamento.
A disputa com a Âmbar não é o único caso de problema enfrentado pelo governo com as térmicas contratadas durante a crise hídrica.
Os altos valores pagos por essa energia levaram a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) a criar a bandeira tarifária de escassez hídrica, que acrescenta na conta de luz R$ 14,20 a cada 100 kWh (quilowatts-hora) consumidos.
O valor é 50% superior à bandeira tarifária mais cara vigente até o início da crise, mas nem assim foi suficiente para cobrir os custos das térmicas e hoje o governo negocia novo empréstimo ao setor elétrico, que pode chegar a R$ 10,8 bilhões, para cobrir o rombo.
O ONS diz que descredenciou a usina seguindo diretrizes da portaria 17/2021 do MME, que prevê o cancelamento de entregas futuras quando a geração é inferior a 50% da oferta, e que a térmica operou entre 3 e 31 de dezembro por força de liminar.
A Âmbar não havia respondido a pedidos de entrevista até a publicação deste texto.