Muito pode se fazer e tem sido feito para minimizar desastres tão dramáticos como os que ocorreram em Petrópolis e em centenas de cidades brasileiras neste verão.
Mas para enfrentar as causas do problema são necessárias reformas mais estruturais: conter a migração para as grandes aglomerações urbanas, implantar uma política fundiária radical que garanta o acesso à terra urbana adequada, realizar uma produção massiva de habitação subsidiada para os mais vulneráveis e urbanizar os assentamentos precários.
Tornar as cidades resilientes, ou seja, mais seguras frente aos eventos extremos, é uma agenda urbana obrigatória nesse século de emergência climática. É necessário, mas insuficiente, a menos que se considere apenas reduzir o número de mortes e desconsiderar as perdas emocionais, materiais e o sofrimento da população já está bom. Claro que não.
O país avançou bastante para minimizar desastres, como apontou Celso Carvalho, ex-diretor do Ministério das Cidades, em artigo no Le Monde Diplomatique. Isso pode ser observado até em Petrópolis, que tem um plano de contingência para chuvas intensas, mas que foi insuficiente para evitar a tragédia que chocou o Brasil.
A metodologia de mapeamento e hierarquização das áreas de risco foram desenvolvidas nos anos 1980 pelo IPT (nstituto de Pesquisas Tecnológicas) e, desde sua aplicação pioneira em São Paulo, em 1989 (gestão Erundina), vem sendo realizada em várias cidades.
Novas tecnologias (fotos aéreas com drones, imagens de satélites e cartografia digital) permitem atualizar e disponibilizar essa informação na internet. O Geosampa, sistema georeferenciado criado em São Paulo em 2013 (gestão Haddad), fornece mapas com a situação de risco em cada lote do município.
Dilma, após a tragédia na Região Serrana (2011), criou o Programa Federal de Prevenção de Desastres, que gerou o Cemaden (Centro de Monitoramento de Desastres Natural) e o Cenad (Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres), que emitem alertas sobre eventos extremos e risco de deslizamento. O Serviço Geológico do Brasil já mapeou o risco em mais de mil municípios, com informações para planejar ações preventivas e medidas de contingência.
Articulado a essas ações, o PAC(Programa de Aceleração do Crescimento) reservou, em 2012, R$ 100 bilhões para que municípios e estados implantassem obras de controle de inundações, contenção de encostas e urbanização de favelas.
A maior parte desses recursos não foi utilizada por incapacidade gerencial dos entes subnacionais em desenvolver projetos. Foram disponibilizados recursos, ainda, para a elaboração de planos municipais de redução de riscos.
Apesar do retrocesso nos programas federais urbanos, essas iniciativas deixaram legados. O sistema de alertas está estruturado, foram elaborados vários planos municipais de redução de risco e a Defesa Civil de vários estados e municípios foi estruturada.
Não se pode dizer que, como em 1988 e 2011, datas das tragédias anteriores, Petrópolis estava totalmente despreparada para enfrentar um evento extremo. O Plano de Contingência de Petrópolis para Chuvas Intensas do verão (2021/2) mostra que existia uma estratégia para enfrentar uma situação crítica.
O plano identifica 96 setores de risco em 19 regiões, cobertas por 18 sirenes espalhadas por 4 bairros; lista os pontos de apoio fixos e rotas de fuga; detalha onde estão as sirenes e como chegar até elas. Os locais onde há uma sirene conta com descrições detalhadas com fotos e mapas das ruas do seu entorno.
O plano é acionado após os alertas de risco enviados pelo Cemaden e pelo Cenad, quando o acompanhamento das chuvas é intensificado. Se o estado de atenção é atingido, é emitido um SMS à população, alertando para chuvas fortes.
Uma cartilha, distribuída para a população, orienta os procedimentos. Ao primeiro toque da sirene, as pessoas devem se preparar para sair de casa a qualquer minuto, recolhendo apenas documentos de identidade, remédios controlados e fraldas, mamadeiras e mudas de roupa para bebê.
Se o monitoramento constatar que o risco de chuva forte por mais horas, é acionado o sinal de alerta com um segundo toque das sirenes. A população deve deixar imediatamente a área de risco com a roupa do corpo e seguir as rotas de fuga para o ponto de apoio mais próximo.
Obviamente, nada disso é simples para a população que vive em áreas de risco. Idosos e crianças não têm a capacidade de seguir esses procedimentos, caso estejam sozinhos em casa. A cena dolorosa de soterramento de avós abraçados a bebês expressa essa situação.
Abandonar bens, objetos e valores é necessário para salvar a vida, mas é extremamente doloroso deixar para trás o pouco que se tem. Muitos têm receio de perder tudo o que tem em casa, não só para a água, mas devido a saques. Acabam tomando a decisão de sair apenas no último momento.
Ademais, apesar do monitoramento, a situação pode se alterar rapidamente. Foi o que aconteceu em Petrópolis. Cinquenta minutos depois da Defesa Civil diz ter emitido aviso de risco moderado de deslizamentos, o Cenad recomendou que áreas de risco fossem evacuadas devido à “probabilidade muito alta de ocorrências (…) com potencial para causar grande impacto na população”.
Segundo Marcelo Seluchi, meteorologista e coordenador-geral de operações e modelagem do Cemaden, a velocidade de alteração dos alertas foi tamanha que a situação “entrou na esfera do imponderável”.
Embora seja indispensável aperfeiçoar o monitoramento, as alertas, a evacuação e o afastamento de áreas de risco, só evitaremos novas tragédias, mortes e perdas emocionais e materiais para a população enfrentando de modo estrutural desse problema —garantindo terra e moradia para as famílias de baixa renda, que vivem em áreas de risco por falta de alternativas.
São necessárias reformas radicais capazes melhorar a distribuição da terra rural e urbana, assim são essenciais mais investimentos na produção de habitação social e na urbanização de assentamentos precários, ao contrário do que fez o atual governo.
A acelerada urbanização gerou uma superconcentração da população em uma parcela pequena no território. Em apenas 0,68% dos 8,5 milhões de km2 do território brasileiro, vivem 85% da população (180 milhões de habitantes, estimativa do IBGE para 2020).
Embora o Brasil tenha 5.568 municípios, 54% da população brasileira (115 milhões) vive em apenas 65 aglomerações urbanas (regiões metropolitanas e cidades com mais de 300 mil habitantes). As áreas de risco estão nessas aglomerações. a concentração urbana está se acentuando: entre 2000 e 2010, 25% dos pequenos municípios perderam população para os maiores.
O deslocamento populacional, gerado por falta de alternativas econômicas e sociais nas pequenas cidades e no seu entorno rural, precisa ser contido com profundas alterações na estrutura fundiária no campo e com um planejamento territorial a nível nacional que distribua melhor as oportunidades.
Nas cidades, além do déficit habitacional acumulado (5,8 milhões de domicílios), estima-se que entre 2020 e 2040, serão necessárias mais 16 milhões de moradias apenas para atender a demanda demográfica, novas famílias que se formam e saldo das migrações.
A maioria dessas famílias são de baixa renda e vivem nas 65 maiores aglomerações urbanas. Se nada for feito, a maior parte desse contingente irá viver em assentamentos precários e muitos irão engrossar as áreas de risco.
Fica para a próxima coluna, detalhar as iniciativas, vinculadas à política fundiária e a produção habitacional, necessárias para promover o acesso à habitação adequada e para enfrentar estruturalmente as áreas de risco.