O planejamento político exige não chorar as derrotas, mas entender que essas derrotas não derivam apenas de erros da esquerda, mas sobretudo de arranjos sofisticados da direita e da extrema direita. Exige ler os acertos eleitorais da extrema direita como peças a serem desmontadas, custe o que custar. Exige acordar e dormir com um único objetivo, que é desmontar organizações e instituições que dão sobrevida a discursos de ódio, discriminatórios e destrutivos.
Vista assim, a derrota de hoje não é tão grave quanto o governo de amanhã de Milei. Na Argentina, como ocorreu no Brasil com o governo Bolsonaro, será necessária uma articulação entre a esquerda institucional e os movimentos sociais, uma vigilância permanente e uma mobilização constante. O futuro da sociedade argentina dependerá dessas articulações. Só resistência das ruas e a resiliência no Parlamento permitirão que Milei não coloque a Argentina num abismo político.
Por outro lado, há, na Argentina, perspectivas que não contamos por aqui. Na Argentina, não há equivalente ao “centrão”. Milei terá mais dificuldades parlamentares do que teve Bolsonaro, e é possível que ele tente operar por meios menos institucionais, com manobras ousadas e surpreendentes. O golpismo de Milei tende, em tese, a dar caras ainda mais explícitas que o de Bolsonaro, mas as condições para que ele seja bem sucedido não estão dadas.
Cabe ainda considerar que as mudanças na Argentina não raro são mais rápidas do que cá. Num programa Aula Pública Opera Mundi, uma década atrás, o ex-ministro da Comunicação Franklin Martins definiu a política argentina como um potro selvagem, que muda de sentido de maneira aparentemente imprevista, em comparação com o elefante Brasil, em que as mudanças seriam mais lentas e mais duradouras.
É muito possível, dependendo do arranjo das forças progressistas e de sua capacidade de mobilização, que o potro argentino mude o sentido do jogo numa velocidade difícil de imaginar no Brasil, abrindo caminho para posicionamentos políticos à esquerda mais radicais do que o que tivemos aqui.
A queda de Fernando de la Rua, em 2001, mudou para melhor a política e a economia argentinas, talvez não no tamanho da necessidade do país. Milei pode ser a porta para um novo momento político, mais à frente, positivo. O risco é enorme, mas não é menor a chance de que o presidente eleito hoje caia do cavalo.
PS: O processo político e o lawfare na Argentina alijaram a ex-presidenta Cristina Kirchner da disputa eleitoral neste ano, assim como o fez com Lula em 2018. É possível que venha dela o ressurgimento da esquerda no país.