O Conselho de Estado da França, a mais alta corte administrativa do país, começou a analisar nesta sexta-feira (29) a primeira ação coletiva contra o Estado por discriminação racial por parte da polícia. Seis organizações de direitos humanos alegam que a corporação discrimina principalmente jovens de origem árabe e negros ao escolher quem parar em patrulhas de rotina, e de forma sistemática.
Se o Estado francês for condenado, a decisão pode moldar o futuro do ativismo ao abrir caminho para processos semelhantes em um país onde as manifestações costumam ter mais força do que ações judiciais coletivas —algo que só se tornou possível a partir de 2014, mas ainda hoje é raridade. A decisão, segundo um membro do Conselho de Estado, deve ser proferida nas próximas semanas.
O caso se baseia em depoimentos de 40 vítimas, bem como da polícia, e pede que o Conselho de Estado francês exija reformas concretas, incluindo a limitação dos poderes policiais para verificar a identidade de pessoas paradas por agentes, além da obrigatoriedade de registrarem as abordagens.
“Não é aceitável que jovens e crianças tenham que aprender que a cor da pele é um problema”, afirma Omer Mas Capitolan, presidente de uma das seis organizações que assinam a ação, Casa Comunitária para um Desenvolvimento Solidário (MCDS).
O governo e a polícia da França têm sido criticados principalmente depois que um policial matou a tiros um adolescente de ascendência norte-africana chamado Nahel, de 17 anos, durante uma blitz em junho, o que levou a diversos protestos violentos e milhares de prisões em todo o país.
O Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial condenou a “prática contínua de perfilamento racial” e instou a França a abordar as “causas estruturais e sistêmicas da discriminação racial” na polícia.
Racismo em debate
Questionado sobre o processo, o Ministério do Interior da França não se manifestou. O órgão já havia dito anteriormente que o racismo na polícia não é sistêmico e que “a criação de perfis étnicos pelas autoridades policiais é proibida”.
Especialistas argumentam que o país não pode mais ignorar as acusações de grupos de direitos humanos de que o racismo influencia no recrutamento, treinamento e nas práticas policiais.
Desde 2016, a França pagou indenizações a indivíduos em três casos em que os controles de identidade da polícia foram considerados discriminatórios.
A ação coletiva de agora não busca indenização monetária, explica Antoine Lyon-Caen, advogado que representa as seis organizações. “O objetivo é olhar para o futuro, traçar todas as formas necessárias para erradicar esse mal”, diz.
Além da MCDS, o grupo de organizações inclui a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Open Society Justice Initiative e as francesas Pazapas Belleville e Reaji (Réseau Egalité, Antidiscrimination, Justice Interdisciplinaire).
Mudança de rumo
Enquanto em outros países, como nos Estados Unidos, ações coletivas fazem parte do cotidiano da defesa dos direitos humanos há décadas, na França esse tipo de processo é bem mais recente. Somente desde 2014 o país permite que organizações entrem com processos judiciais em nome de um grupo prejudicado por uma política ou prática.
As ações, porém, geralmente fracassam, e os legisladores debatem maneiras de fazer com que a pauta avance. Na França, “a defesa judicial não é uma tradição”, afirma Sophie Latraverse, advogada e especialista em antidiscriminação. “Essa é a primeira [ação coletiva contra o Estado], a tradição [aqui] é ir para as ruas.”
Em sua argumentação, Lyon-Caen cita uma decisão de 2013 contra a cidade de Nova York, que a considerou culpada por perfilamento racial e práticas inconstitucionais por parte da polícia. “Essa decisão traz esperança, pois coloca em prática medidas para transformar a polícia e um mecanismo de controle”, afirma.
Quanto ao veredicto, Gwénaële Calvès, professora de direito da Universidade de Cergy-Pontoise, acredita que uma derrota do Estado enviaria uma mensagem mais ampla sobre ações coletivas na França.