Anticiclone e ciclones extratropicais: ‘O Grande S’

O mês de julho de 2023 apresentou um quadro meteorológico raro, com duas ocorrências de ciclones extratropicais continentais na Região Sul do Brasil. A condição de maturação de um ciclone deste tipo sobre o continente por si só não é tão rara nesta altura da estação de inverno, mas duas ocorrências consecutivas, quase análogas, são dignas de nota.

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Vale ressaltar que apenas um deles, a ocorrência verificada ao redor do dia 12 de julho foi totalmente independente. A ocorrência centrada no dia 8 do mês foi dependente, ou seja, surgiu derivada de um outro ciclone extratropical oceânico gigante que começou a surgir em quatro dias antes sobre o extremo sul da Argentina.

O segundo ciclone extratropical deste mês foi tão grande e intenso que infestou a área do Atlântico Sul com outros ciclones extratropicais dependentes, de todos os tamanhos e fases de desenvolvimento. Situação típica ao redor da Antártida nos últimos 20 anos.

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É importante ressaltar que as configurações geográficas também precisam ser lembradas, pois a maturação de ciclones extratropicais continentais no hemisfério Norte é mais comum, em especial sobre o Canadá e a Rússia, justamente pela grande extensão continental em altas latitudes. Se por um lado, o hemisfério Norte é muito mais continental, no hemisfério Sul, temos o oposto, especialmente a América do Sul que apresenta um perfil diferente, onde as terras emersas afunilam conforme avançamos nas latitudes, em sentido ao sul.

Os ciclones são fenômenos meteorológicos descritos como grandes centros de baixa pressão atmosférica em superfície que se encaixam na escala sinóptica (algo que tenha um tamanho entre 300 a aproximadamente 2000 km de extensão). Alguns podem ser enquadrados na meso-escala, atingindo proporções um pouco menores. São depois classificados de forma a serem divididos em dois grandes grupos, onde o tipo de processo para a sua formação passa a ser o principal fator desta divisão, conforme as escolas clássicas. Ainda temos uma nova categoria que abriria espaço para os sub-tropicais. Ela ainda está em estágio de avaliação, pois necessita de um arcabouço teórico mais elaborado, o que não impediu de ser colocada já em prática.

A divisão clássica dos ciclones

Foto: Reprodução/NOA/Nasa

Seguindo a divisão clássica, temos os ciclones tropicais, cuja formação em essência ocorre pelo processo convectivo oriundo de gigantescas nuvens do tipo cumulonimbus (Cb) que atuam em grupos coesos, formando o grande centro de baixa pressão em superfície do ciclone, distribuídos ao seu redor em forma de braços nebulosos espiralados múltiplos, muito semelhante a uma galáxia. Em geral, apresentam tamanhos variados entre 300 a 500 km de diâmetro, com algumas perturbações periféricas que ainda podem se estender por mais de 100 km, em especial, no seu setor dianteiro, no sentido do seu deslocamento.

O segundo grupo trata dos ciclones extratropicais. Sua formação essencialmente é descrita por duas escolas básicas da meteorologia e climatologia geográfica: a norueguesa e a francesa, respectivamente. Embora tenham alguns pontos em comum, elas divergem bastante no que tange ao processo de maturação de um ciclone extratropical. Não caberá aqui fazer uma ampla discussão, então fiquemos com o ponto que nos interessa que é a formação do centro de baixa pressão atmosférico do ciclone extratropical em superfície, pois este, além de ser muito maior que os tropicais, surge pela diferença da distribuição espacial da temperatura do ar pelas latitudes médias (de 30 a 60º N ou S).

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Essa diferença torna-se marcante pelo avanço de uma massa de ar fria proveniente de regiões de altas latitudes, como a Antártida. Devido a um distúrbio qualquer pelo alto potencial gerado entre os valores de temperatura, especialmente se for sobre o continente mais quente, como foi um dos casos recentes, tem-se então o início do processo que irá alterar os campos da pressão atmosférica.

Como é estável, o ar frio tende a ficar na superfície enquanto se desloca para as latitudes mais baixas como uma enorme lentícula. Deste modo, ele remove o ar mais quente que estava a sua frente, obrigando-o a subir. Se houver muita umidade neste ar forçadamente elevado, ele tenderá a formar nuvens, inclusive cumulonimbus, distribuídos em uma ampla linha, denominada de frente fria (escola norueguesa) ou canal depressionário (escola francesa).

O avanço da massa de ar fria sobre a quente tem grande extensão. Assim, os fatores inerciais do planeta são aplicados devido a sua rotação. No hemisfério Sul, isto causa uma circulação entre os deslocamentos do ar frio e o ar quente no sentido horário, gerando um centro de baixa pressão que será potencializado, em especial, porque o ar quente é removido muito velozmente da superfície, quanto mais próximo estiver do distúrbio original que provocou a geração do ciclone.

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Ciclone Rio Grande do Sul
Foto: Reprodução/Twitter

Em geral, no nosso quadrante que envolve a América do Sul, o Atlântico Sul e a região da península Antártica, a maturação de ciclones extratropicais de latitudes mais baixas ocorrem entre 100 a 300 km de distância da costa leste da América do Sul, quando não muito mais afastado. Contudo, quando o distúrbio inicial do ciclone extratropical ocorre sobre o continente, ele poderá maturar bem na interface continental costeira, justamente onde podemos ter variações mais bruscas entre temperaturas do ar sobre o continente e o oceano.

Nos casos recentes, ainda podemos incluir um agravante da presença da extensão do anticiclone do Atlântico Sul, que durante esses meses de inverno, ocupa áreas geográficas brasileiras, tomando boa parte dos estados do Sudeste e Centro-Oeste. Sua presença intensifica a amplitude de temperaturas continentais, potencializando o processo.

O que é um anticiclone

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Foto: Reprodução/Canva

O anticiclone é o inverso do ciclone. Apresenta alta pressão atmosférica em superfície. Como inibe a formação de nuvens, permite que a superfície onde ele está posicionado receba alta carga de radiação solar, mesmo no inverno, aquecendo o ar atmosférico da troposfera (a primeira camada da atmosfera de baixo para cima). Sua circulação, no hemisfério Sul é anti-horária. É justamente por isto que agora ocorrem as chuvas de inverno em vários estados da região Nordeste, pois como boa parte do seu centro está posicionado na região Sudeste, a periferia do anticiclone força a circulação do ar a vir do Atlântico para cima do continente. O ar bem carregado de umidade favorecerá a ocorrência de chuvas intensas principalmente na Bahia, em Sergipe e em Alagoas.

A severidade do sistema do ciclone extratropical está ligada à maior diferença de temperatura

O tempo de permanência do anticiclone, sua intensidade (ou resistência) e a temperatura das águas do Atlântico Sul tropical definirão tanto a intensidade das chuvas, bem como a sua persistência nos estados do Nordeste sob sua influência. Esses são os fatores que controlam este quadro meteorológico recorrente todos os anos e não “mudanças climáticas” ou “aquecimento global”. Por isto, cada ano vemos estas condições serem diferentes, dentro da variabilidade climática clássica e não de alarmismos.

Diametralmente oposto, do lado extremo Sul deste anticiclone, cuja circulação fomenta as chuvas dos estados do Nordeste, teremos o embate com o ar frio que vem avançando, como descrito anteriormente. Será justamente aqui que devemos focar, pois a severidade do sistema do ciclone extratropical está ligada à maior diferença de temperatura, em seu estágio inicial, causando a seguir uma maior diferença de pressão atmosférica em superfície. Se esta diferença de pressão é grande, mais fortes serão os ventos que sopram em sentido à baixa pressão em superfície, tentando compensar esse desbalanço.

Por questões espaciais, o centro de baixa, embora seja grande, dentro da escala sinóptica, ainda é menor quando comparado com o sistema como um todo, quando observamos o extenso braço de nuvens da frente fria associada. Assim, os ventos serão muito intensos nas proximidades do centro do ciclone e tendem a diminuir de velocidade conforme nos afastamos deste centro.

Nos casos ocorridos em julho de 2023, os dois sistemas maturaram este centro ainda dentro do continente ou no limite costeiro, trazendo os dissabores dos ventos fortes sobre as áreas populosas dos Estados do Sul, em especial Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com atuações um pouco menores sobre o Paraná e até São Paulo, em especial nas regiões costeiras (a balsa que faz a ligação Guarujá–Bertioga teve que ficar fora de operação por muitas horas devido as grandes ondas geradas pelos ventos sobre o mar).

O “Grande S”

De maneira didática, essa combinação muito recorrente durante o inverno é descrita como “O Grande S”, onde a circulação dos ventos em superfície contorna o anticiclone que está bem pronunciado sobre boa parte do Brasil (centrado aproximadamente na Região Sudeste). Esse sistema anticiclônico seria a parte de cima do “S”, enquanto que o ciclone extratropical (continental ou marítimo, próximo à costa brasileira) seria a parte de baixo do “S”, pois essa letra representaria a circulação de ventos que vem combinada do anticiclone do interior do Brasil, passando desde Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, seguindo pelos Estados do Sul e desembocando dentro do centro de baixa pressão do ciclone extratropical.

figura 2 - ricardo felício - ciclones e anticiclone
Esquema pictórico da circulação anticiclônica (H azul – alta pressão) e a conexão com um ciclone extratropical sobre a área do Brasil (L vermelho – centro de baixa pressão); a figura do ‘Grande S’ (linha azul semi-transparente) indica a circulação periférica que conecta os dois sistemas; uma vez dentro do ciclone o ar tende a subir, ocasionando a oclusão (espiral central) onde o ar quente que foi removido da superfície, atinge níveis superiores para participar de outros processos de escoamento na atmosfera | Foto: Reprodução/Inmet

São muitas as combinações geográficas da posição do “S” que, claramente, variam conforme os anos. Como esta circulação vem carregada de umidade já que se inicia no oceano, também apresentará intensidades variadas anualmente, tendo em vista que pode ser influenciada por questões de El Niño ou La Niña, Atlântico quente ou frio, diferenças de temperatura do ar sobre o continente etc. Contudo, o que não muda são duas coisas: a nossa baixa resiliência às ocorrências deste fenômeno quando ocorre maturação do ciclone muito próxima ao continente e as bobagens alardeadas pela mídia marrom que este é um efeito das “mudanças climáticas”.

Esteja certo de que durante o inverno no hemisfério Sul, a “Trilha das Depressões”, como denominei na minha dissertação de mestrado, pode se estender às latitudes mais baixas. Assim, com os valores recordes verificados de baixas temperaturas nos últimos anos na Antártida, como observado em 2021, poderemos ter diversas massas polares frias, gerando o potencial necessário para a maturação de intensos ciclones extratropicais. Para a nossa sorte, a regra é que a maturação destes ciclones ocorra muito mais vezes sobre os oceanos.

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