A cena está sendo martelada em nosso crânio desde que “Missão: Impossível – Acerto de Contas” entrou em produção: Tom Cruise acelera sua motocicleta até o topo de uma colina e salta no vazio, acionando seu pára-quedas ao abraçar o abismo. A plateia engole em seco. Esse momento catártico, que justifica o investimento emocional na aventura, sequer é a cena mais eletrizante do novo filme. Venha para o aperitivo, ganhe uma refeição completa.
Desde que realizou o salto da TV para o cinema em 1996, “Missão: Impossível” se tornou a máquina mais bem azeitada da cultura pop moderna. É uma engrenagem complexa. Mesmo assim, tudo funciona em “Acerto de Contas”, primeira parte dessa nova aventura (o segundo filme, até segunda ordem, estreia em um ano), mesmo quando as cenas se encaixam por pura energia cinética.
O novo filme é um espetáculo empolgante, divertido e deliciosamente descartável. Reenergizado com o sucesso acachapante de “Top Gun: Maverick”, e alçado à condição de salvador do cinema pós-pandemia, Tom Cruise sabe que botões apertar e como conduzir esse estilo de cinema-pipoca para as massas, criado para estimular os sentidos sem deixar tempo para raciocinar ou respirar.
O sucesso revigorado de Tom Cruise não deixa de ser curioso, já que há pouco menos de uma década ele estava pronto para passar o bastão da série. Problemas pessoais e exposição pública de sua intimidade arranharam sua carapaça de astro, uma crise que culminou com seu rompimento com a Paramount em 2006, logo depois do lançamento de “Missão: Impossível III”. A aventura seguinte levaria cinco anos para sair da gaveta e sequer trazia a marca da série em destaque, ressaltando o título “Protocolo Fantasma” no cartaz.
O gênio, contudo, saiu da garrafa. Embora a conversa nos bastidores era que Jeremy Renmner seria o novo rosto de “Missão: Impossível”, o furacão Cruise logo se impôs. Dirigido por Brad Bird, o filme trazia sua cota de cenas de ação fantásticas, mas ganhou as manchetes quando Tom rodou uma sequência em Dubai no Burj Khalifa, o edifício mais alto do mundo. Do lado de fora do prédio.
O quarto lugar nas bilheterias mundiais, atrás de novos episódios de “Harry Potter”, “Transformers” e “Piratas do Caribe”, reacendeu o interesse em “Missão: Impossível”. Cruise, por outro lado, continuava a encabeçar filmes que, quando não fracassavam totalmente (o caso de “Rock of Ages”), apresentavam resultados meramente medianos. Foi assim com “Jack Reacher” e com um par de aventuras de ficção científica, “Oblivion” e “No Limite do Amanhã”.
A nova fase de “Missão: Impossível”, contudo, veio justamente nas costas de “Jack Reacher”. Cruise teve uma conexão forte com o diretor Christopher McQuarrie, que tem na estante um Oscar pelo roteiro de “Os Suspeitos”, de 1995. Dessa ligação veio o convite para ele dirigir “Missão: Impossível – Nação Fantasma”, e a série deixou seu hiato de incertezas no passado, recuperando seu lugar entre as grandes marcas do cinema pop.
O trabalho de McQuarrie foi consolidar seu filme como uma aventura em equipe, o DNA da série desde a TV, sem remover um centímetro do protagonismo de Tom Cruise, tampouco sua propensão em encarar sequências de ação que desafiam todas as regras de segurança e os nervos de sua equipe de produção. “Nação Fantasma” e, em seguida, “Efeito Fallout”, conseguiram esse equilíbrio, elevando a série a um outro patamar de excelência.
Boa parte se deve à generosidade de Cruise com seus parceiros, em especial Vign Rhames, uma constante na série desde o primeiro filme, que Brian De Palma dirigiu em 1996, e Simon Pegg, que deixou de ser o “sujeito dos computadores” para encarar a ação em campo. A maior adição a essa mistura foi, sem dúvida, a espetacular Rebecca Ferguson como a espiã britânica Ilsa Faust, um contraponto profissional e romântico ao espião Ethan Hunt.
Esse é o time no centro de “Acerto de Contas – Parte Um”, filme que traz uma régua mais alta que seus antecessores, em especial por estarmos nesse momento na carreira de Cruise. Embora não exista movimento do astro que não faça parte do plano de marketing, sua dedicação para preservar a experiência do cinema é genuína. Essa determinação deixa clara sua visão de que as plataformas de streaming, mesmo com toda sua força, ainda são a janela secundária na vida útil de um filme.
Não por acaso, o principal vilão do novo “Missão: Impossível” é um algoritmo, um programa de inteligência artificial criado para sabotar sistemas digitais. Ao extrapolar sua programação, esse código ganha consciência e se alastra por qualquer dispositivo eletrônico no planeta, direcionando seus esforços para eliminar aqueles que colocam em risco sua existência – no caso, Ethan Hunt.
Enquanto as potências mundiais entram numa corrida para controlar o algoritmo, o programa, batizado “A Entidade”, recruta Gabriel (Esai Morales), figura sombria do passado de Hunt, e usa o sujeito para atingir o espião onde ele é mais vulnerável: em seus amigos. “Acerto de Contas” desenrola essa trama com mais verborragia do que seria necessário e ainda encontra espaço para espremer novos personagens, como Jasper (Shea Whigham), agente federal determinado a capturar Hunt, a assasina Paris (Pom Klementieff) e a ladra Grace, defendida com elegância por Hayley Atwell.
“Missão: Impossível – Acerto de Contas” se posiciona como uma caça ao tesouro global em que heróis e vilões buscam duas metades de uma chave – literalmente uma chave! – capaz de desativar a Entidade. Para amarrar a trama rala, McQuarrie investe cada centavo do orçamento em pura energia cinética. Além do já emblemático salto de motocicleta, o filme traz uma perseguição em Roma e uma luta no topo de um trem em movimento que deixas produtos similares lançados este ano no chinelo.
Tom Cruise, agora aos 61 anos, ocupa solitário a posição de maior astro de cinema do planeta, projetando uma imagem simpática e totalmente apaixonada pelo ofício que abraçou há décadas. Seu papel como “guardião” da experiência cinematográfica, e astro excêntrico que parece sempre em busca de outro pico de adrenalina, mantém a roda girando.
Existe o risco de seu entusiasmo bater no teto e suas aventuras para construir pedaços perfeitos de entretenimento se tornem repetitivas – seja se agarrando em um avião alçando voo, prendendo o fôlego em sequências submarinas, praticando saltos de pára-quedas estratosféricos ou se jogando de moto em um abismo. Mas não agora. Pelo resultado arrebatador de “Missão: Impossível – Acerto de Contas”, não será nem tão cedo