“Seus cientistas estavam tão preocupados em saber se conseguiriam que eles sequer pararam para pensar se deveriam.” Sábias palavras do Dr. Ian Malcolm, imortalizadas há trinta anos por Jeff Goldblum em “Jurassic Park”.
O assunto em questão era o avanço em pesquisas genéticas que possibilitaram trazer dinossauros de volta à vida. Um feito que levantou dilemas éticos, morais e culturais. No mundo real, a evolução da tecnologia digital traz hoje um questionamento semelhante. As ferramentas modernas conseguem, de forma cada vez mais precisa, reviver artistas como simulacros artificiais.
A discussão voltou à berlinda graças ao novo comercial de uma montadora de automóveis. Na peça de poucos minutos, a cantora Elis Regina, morta em 1982, é recriada para cantar, ao lado da filha Maria Rita, a emblemática “Como Nossos Pais”, de Belchior. A propaganda fez o que toda propaganda faz: estimulou uma resposta emocional para estabelecer uma conexão com o público.
Pelo burburinho online ao longo da última semana, o objetivo foi alcançado, já que pouco se falou em outra coisa. É nesse ponto, contudo, que as reações divergem. Enquanto muitos se emocionaram genuinamente com o encontro até então impossível de mãe e filha, outros levantaram a inadequação da canção, escrita em meio à ditadura militar no Brasil, recuperada para vender carros.
A discussão nos dois pólos é válida, especialmente em um país que presta tão pouca atenção a seu passado como o nosso. Em meio ao debate social e político, entretanto, existe uma questão indiscutível: Elis Regina está lá, em cena, “viva” graças ao milagre irrefreável da tecnologia digital. Se sua imagem pode ou não ser usada é algo para herdeiros e advogados resolverem. O fato é que o coelho saiu da cartola, e o cenário cultural, seja na publicidade ou no entretenimento, nunca mais será o mesmo.
No cinema, o uso de artistas mesmo depois de sua morte não é novidade há algumas décadas. Em 1973, Bruce Lee, surfando no sucesso de “Operação Dragão”, estava filmando seu trabalho seguinte, “Jogo da Morte”, quando um edema cerebral lhe tirou a vida. Para não perder o material e “honrar” o astro, os produtores usaram dublês, seus rostos cobertos por barba e máscaras, para terminar o filme. Em uma cena, um recorte de Lee em cartolina foi usado como seu “reflexo” em um espelho. “Jogo da Morte” foi finalmente lançado em 1978.
Na época o debate ético sobre finalizar um filme após a morte de seu astro não foi extenso, mesmo que muitos apontassem que incorporar cenas do funeral do próprio Bruce Lee não foi nada além de mau gosto. Por outro lado, é compreensível que uma produção precise ser finalizada, até pelas centenas de profissionais envolvidos, mesmo com a tragédia da morte de um de seus protagonistas.
Foi o que aconteceu, por exemplo, em “Projeto Brainstorm”, ficção científica de 1983 com Christopher Walken e Natalie Wood. A estrela desapareceu misteriosamente ao cair de um barco em que passeava com o marido Robert Wagner, acompanhados do próprio Walken. As cenas remanescentes do thriller foram completadas quando sua irmã assumiu sua posição no set, com o rosto coberto por sombras.
“O Corvo”, de 1994, perdeu seu astro, Brandon Lee, baleado acidentalmente durante a produção. O roteiro foi modificado para reposicionar algumas cenas e o personagem de Lee ressurgiu com o corpo de seu dublê, Chad Stahelski (que depois se tornaria diretor com a série “John Wick”), com o rosto de Brandon superposto digitalmente ao seu. Foi o primeiro uso de tecnologia digital com esse propósito, o que aconteceu posteriormente para completar as cenas de Oliver Reed em “Gladiador” e, mais recentemente, o trabalho de Paul Walker em “Velozes & Furiosos 7”.
Uma coisa é usar da tecnologia para finalizar um projeto que um ator desenvolveu ainda em vida. Outra é usar sua imagem em empreitadas inéditas que, na maioria das vezes, sequer existiam antes de sua morte. A evolução das ferramentas digitais, indo de imagens geradas em computador ao deep fake, passando pela inteligência artificial, criou um vácuo em que qualquer pessoa, não importa se viva ou morta, pode ser reproduzida em filme.
Elis Regina foi colocada no comercial polêmico da mesma forma que Peter Cushing, ator britânico clássico, foi “escalado” em um papel na aventura “Rogue One – Uma História Star Wars”. Cushing, que morreu em 1994, interpretou o vilão Grand Moff Tarkin no “Guerra nas Estrelas” de 1977, e ressurgiu como o personagem no filme de 2016. Assim como Elis, Peter foi “interpretado” por um ator que lhe emprestou corpo e performance, e teve a recriação digital de sua face posicionada sobre o dublê.
Outros filmes, como “Capitão Sky e o Mundo de Amanhã” e “Superman Returns”, usaram, respectivamente, cenas de Laurence Olivier e Marlon Brando retiradas de outros filmes e retocadas digitalmente. No caso de Cushing, contudo, a performance era totalmente inédita, um papel que o ator jamais teve a chance de optar. A ousadia digital em “Rogue One” abafou o que talvez fosse a grande questão ética do cinema moderno.
Não houve, por exemplo, nenhum pudor por parte dos realizadores de “Star Wars: A Ascensão Skywalker” em usar a imagem de Carrie Fisher, que morreu em dezembro de 2016 – ou seja, antes do início da produção. Embora seu papel tenha sido reduzido, e a certa altura a produtora Kathleen Kennedy tenha garantido que a atriz não estaria no filme, por fim o diretor J.J. Abrams recuperou material não usado em “O Despertar da Força” e, com a bênção da filha da atriz, Billie Lourd, recolocou Fisher como Leia Organa no filme de 2019.
Talvez a única coisa que ainda mantenha um certo controle na proliferação de artistas mortos “trabalhando” em uma coleção de novos filmes e séries seja a indignação de seus pares. É difícil argumentar quando a família concorda com uma ressurreição eletrônica, mas a questão se agrava quando é uma empresa por trás desse movimento.
Nos Estados Unidos, a mais ativa é a WorldWide XR, que hoje representa mais de quatrocentas celebridades entre atores, músicos, atletas e figuras históricas. Em meio à bagunça jurídica para administrar a imagem de um artista morto, mesmo ao lado de quem controla seu espólio, a empresa, formada em 2019, ameaça desde então abrir a Caixa de Pandora.
Foi o ano em que os diretores Anton Ernst e Tati Golykh anunciaram o projeto “Finding Jack”, um drama ambientado na Guerra do Vietnã que teria entre seus protagonistas James Dean. Ou melhor, uma recriação digital completa, em uma performance real ao lado do restante do elenco, do ator morto em 1955, aos 24 anos, em um acidente de carro.
“Finding Jack”, amplamente divulgado como um evento histórico para o cinema, encontrou em seu caminho a resistência da comunidade artística. Chris Evans à época foi taxativo: “É uma ideia terrível! Talvez um computador possa pintar um novo Picasso, ou escrever novas canções de John Lennon”. Foi o necessário para soarem os alarmes. Um dos diretores do filme, Anton Ersnt, relativizou o absurdo: “Não consigo entender qual o dilema moral”. “Finding Jack” obviamente nunca saiu do papel.
Infelizmente é questão de tempo. Em meio aos entraves em relação a direitos de imagem, mais e mais filmes e comerciais exploram a lembrança de artistas que jamais tiveram a opção de escolher seus projetos – como Harold Ramis, ressuscitado no último “Ghostbusters”. Indo além, a adoção de simulacros digitais, amplificada pela popularização da inteligência artificial como substituto do pulso humano, elimina a própria natureza da arte: a de tomar decisões no set, no calor das filmagens, que por fim terão impacto na performance. Isso é algo que uma máquina jamais poderá substituir.
O que não vai impedir muita gente de tentar. Produtores vão se ancorar no poder da nostalgia para justificar cenas de gosto duvidoso, como George Reeves e Christopher Reeve sendo espantalhos digitais vestidos de Superman em “The Flash”. A família de muitas celebridades já mortas podem, por sua vez, atropelar quaisquer dilemas morais para autorizar o uso de imagem – seja pela emoção genuína de ter um momento criado digitalmente com alguém querido, seja por dinheiro.
Certo mesmo estava Robin Williams. Antes de morrer, o que aconteceu tragicamente em 2014, o ator deixou documentos com instruções específicas sobre o que seus herdeiros poderiam fazer com sua imagem. Até 2039, eles estão expressamente proibidos de autorizar seu uso em comerciais e publicidade. E não podem inserir Robin Williams como uma criação em CGI em nenhum filme ou série, no cinema ou na TV, para o resto da vida. Ele vive, assim como seu legado, unicamente em nossas lembranças.