Luz del Fuego nasceu Dora Vivacqua, em família abastada, em que reinavam protocolos, etiquetas, boas escolas, empregadas e “irmãs casadoiras”. Passou a infância e a adolescência em Belo Horizonte, quando já sente queimar tanto o tédio dos rituais provincianos quanto a confessa necessidade de aparecer.
Como não vê problema em criar escândalos, não se sabe se faz dos escândalos sua arte ou se é sua subversiva maneira de estar no mundo que a faz artista. Até deu tiros para o alto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em pleno baile de segunda-feira de Carnaval, vestida de noivinha e rodeada pela fina flor da sociedade carioca, enquanto morria de rir —uma cena marcante, narrada logo no começo do livro.
Tornou-se uma estrela conhecida na metade do século 20 por fazer apresentações de dança com serpentes. Embora também fosse escritora, passou a ser admirada e requisitada como uma vedete, uma mulher exótica, aparecendo quase sem roupa na capa de grandes revistas brasileiras quando a maioria de nossas avós não fazia nada além de criar filhos, muitas vezes às dezenas.
Claro que o fato de ter um irmão senador, uma família aristocrática —com ascendência que vai parar em ninguém menos que o padre Antônio Vieira—, estudos e amigos endinheirados também lhe concederam muitos cruzeiros de tolerância.
Mais tarde, ela foi morar numa ilha perto de Paquetá, no Rio de Janeiro, na qual passou a permitir a entrada somente sem roupa: a ilha do Sol, onde morreu aos 50 anos. Tornou-se naturista militante, chegando a se dedicar politicamente a essa causa. Seu nome se tornou sinônimo de ofensa à ordem no país que passaria pela ditadura militar em breve.
Tudo isso está no título cujo autor, o espanhol Javier Montes, soube ver que, no “tonzinho” empregado quando ouviu falar de Luz del Fuego nos anos em que esteve no Brasil, existem camadas profundas da cultura brasileira e da sua relação com as mulheres.
O problema é que ele não chega a tocar essas camadas, mas beira o antiquado gênero da crônica de costumes, brindando enumerações enciclopédicas de nomes de tecidos finos, doces e demais artigos luxuosos dos eventos cotidianos da vida família Vilacqua, ironizando certa cafonice.
O autor também dá descrições detidas e longas sobre a boemia carioca do Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950 na Lapa e apresenta dedicação quase naturalista às espécies de serpentes do Brasil e à existência de Carmen Miranda e outros estereótipos. Enfim, trata-se de um livro encantado com um Brasil folclórico, que bate palmas à mulher transgressora em um cenário, mas não a percebe em seu contexto.
O livro oferece hipóteses causais que não param em pé, apesar da escrita por vezes cheia de efeitos. Repetindo, consciente ou inconscientemente, o gesto de filiar a existência de Luz del Fuego como fenômeno a um homem, ensaia atribuir a posição de evento fundador da personalidade incendiária da mulher a um incêndio causado pelos jovens Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava à casa dos Vivacqua em um ato rebelde.
Em canção composta em homenagem a Luz del Fuego, Rita Lee cantou: “Eu hoje represento a cigarra/ Que ainda vai cantar/ Nesse formigueiro quem tem ouvidos/ Vai poder escutar/ Meu grito” —versos que fazem pensar que talvez só se possa abordar as víboras gigantes ao redor de Luz del Fuego compreendendo seres como as formigas e, principalmente, as cigarras que ainda vão cantar.