Era outubro de 2001, poucas semanas após os atentados terroristas do 11 de Setembro, e um sorridente George W. Bush vestido com um tangzhuang, tradicional veste chinesa, posava para fotos com o então líder do país asiático, Jiang Zemin, em uma conferência em Xangai.
“O presidente e o governo da China responderam imediatamente aos ataques do 11 de Setembro. Não houve hesitação, não houve dúvidas de que eles iriam ficar ao lado do povo dos Estados Unidos durante esses tempos terríveis”, disse Bush na ocasião, em declarações que soam improváveis hoje, com as duas potências tratando-se como inimigas numa espécie de Guerra Fria 2.0.
“Todas as nações civilizadas devem se unir para derrotar essa ameaça. E eu acredito que os Estados Unidos e a China podem ter muito sucesso quando trabalham juntos para derrotar o terrorismo”, afirmou o então líder americano ao lado do dirigente chinês.
Mesmo para a época, a fala era estranha aos ouvidos de quem acompanhava a escalada crescente de tensões entre China e EUA no começo do governo Bush. Eleito um ano antes, ele fizera críticas ao que chamava de excesso de benevolência da gestão do democrata Bill Clinton com o país asiático.
Com os ataques do 11 de Setembro —e a consequente atenção maior ao Oriente Médio e à guerra ao terror—, as tensões arrefeceram, num movimento que abriu espaço para uma crescente predominância chinesa no cenário global, defende Jacques deLisle, professor da Universidade da Pensilvânia. Para ele, os atentados e as respostas que se seguiram foram fundamentais para a China se tornar o que é hoje.
Diretor do Programa de Ásia do think tank de política internacional Foreign Policy Research Institute, deLisle defende que o foco da política externa americana na guerra ao terror “distraiu” os EUA, pegos de surpresa com a ascensão da China como superportência, grande fato da geopolítica deste século.
“Embora seja um lugar-comum depois do 11 de Setembro pensar no terrorismo do radicalismo islâmico como o fator mais importante nas relações internacionais na era pós-Guerra Fria, a ascensão da China é provavelmente muito mais importante para os EUA a longo prazo”, escreveu o pesquisador em um ensaio quando os atentados completaram uma década, em 2011.
Agora, dez anos depois e com o mundo dividido entre americanos e chineses, o professor revisitou o artigo a pedido da Folha e manteve o vaticínio. “O foco dos EUA na chamada guerra global ao terror levou o país a prestar pouca atenção às implicações da ascensão da China”.
A mudança de postura à época foi necessária para os EUA, que precisavam do apoio do país asiático, detentor de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e poder de veto nas decisões do grupo, para conseguir aval internacional para a invasão do Afeganistão.
E a nova postura reverberou inclusive internamente. No discurso de 2002 do Estado da União, fala anual que serve para o presidente americano apresentar oficialmente ao Legislativo suas prioridades, Bush disse que, naquele “momento oportuno, um perigo comum está apagando velhas rivalidades”.
Parecia um novo tempo entre os dois países. No primeiro aniversário do atentado, por exemplo, Jia Qingguo, doutor pela Universidade Cornell e hoje professor de relações internacionais da Universidade de Pequim, escreveu que “o 11/9 apenas acelerou” a aproximação entre China e EUA, “que não têm razão para não se unir, lutar contra o terrorismo internacional e construir uma ordem internacional melhor”.
Focados no combate ao terrorismo internacional, os EUA ficaram sem ativos diplomáticos e mesmo financeiros para pressionar a China a se alinhar às normas internacionais correntes, defende deLisle.
Segundo ele, “a China era menos poderosa, menos autoconfiante e menos resistente às ideias ‘ocidentais’ do que é hoje”, e tentar enquadrar o país agora é uma tarefa muito mais hercúlea do que há 20 anos.
Mas a China carrega profundos traumas de interferência estrangeira, como as invasões britânicas que tomaram o território de Hong Kong. Uma abordagem mais coercitiva não poderia alimentar mais ressentimento do povo chinês e afastar de vez o país? “Talvez, mas não acho que isso seria inevitável se tivesse sido feito da maneira correta”, diz o professor.
Há ainda outra implicação dos ataques: as respostas dos EUA aos atentados reduziram a capacidade de pressão sobre aspectos como direitos humanos, afirma deLisle, ainda que o país mantenha críticas à maneira como a China reprime a minoria muçulmana dos uigures na região de Xinjiang, chamada pelos americanos de genocídio.
Críticas dos EUA sobre direitos humanos na China foram, depois do 11 de Setembro, rebatidas com os casos documentados de tortura cometidos por autoridades americanas nas prisões de Guantánamo (Cuba), e Abu Ghraib (Iraque), além das restrições de liberdades civis em território americano em nome do combate ao terrorismo.
Agora, 20 anos depois, os EUA tentam fechar um ciclo da guerra ao terror com o fim da ocupação militar no Afeganistão e prometem voltar o foco das relações externas para a China, mantendo uma política que vinha desde o fim do governo de Barack Obama, de quem Biden foi vice, e continuou sob Donald Trump.
“O engajamento construtivo está, em ampla medida, morto”, diz deLisle, e a atual gestão indica que vai seguir “com uma visão mais dura e mais cética sobre a China”, concentrando-se no alinhamento com democracias na região do Indo-Pacífico.
De qualquer maneira, a forma como o país deixou o Afeganistão passa uma mensagem ruim. “Deveria ser um passo em direção ao cumprimento da promessa de focar a segurança nacional dos EUA na China e na Rússia, mais do que no terrorismo internacional”, diz. Só que a saída foi feita de forma tão desastrosa que, pelo menos a curto prazo, comete o mesmo erro de 20 anos atrás: “Leva o foco da política externa americana para outros assuntos que não a China”.