“Phil? PHIL??! Sou eu, Ned! Ned Ryerson!” Se o primeiro encontro do repórter Phil Connors com seu amigo de infância grudento já era um exercício em desconforto, imagine para o protagonista de “Feitiço do Tempo” (1993), obrigado por um loop temporal a repetir o mesmo momento sabe-se lá quantas vezes.
Desconforto para ele, risadas fartas do lado de cá. Já era esse o efeito que o filme de Harold Ramis, protagonizado por Bill Murray, causava em seu lançamento há três décadas. Hoje, alçado a clássico moderno, o filme garantiu um lugar na cultura pop que sua produção atribulada não poderia prever.
“Feitiço do Tempo” se tornou não apenas uma das maiores comédias de todos os tempos, mas se houve um filme mais engraçado nos últimos 30 anos, o título me escapa. O tempo – veja só! – tratou de fazer dele uma pérola que pode ser vista como entretenimento ligeiro e, também, como uma peça contemplativa.
Essa visão antagônica, além de responder por parte de seu charme atemporal, também causou atrito entre Ramis, o diretor que mirou na comédia, e Murray, o astro de temperamento difícil que pendia mais para seus aspectos filosóficos. Equilibrando os dois polos, estava o roteirista Danny Rubin, que rabiscou a ideia original.
Para entender a gênese de “Feitiço do Tempo”, é preciso observar o cinemão americano no começo dos anos 1990. Os estúdios buscavam produtos que pudessem ter mais apelo junto às famílias, especialmente depois do renascimento da Disney poucos anos antes com “A Pequena Sereia” (1989).
Os motivos eram comerciais, claro. Filmes de apelo universal, que atraíam o público de todas as idades, experimentavam uma carreira de sucesso também no mercado de home video, então fonte importantíssima de renda para as grandes produtoras. Buscar os produtos que tivessem esse apelo, em especial ao observar os grandes sucessos à época, como “E.T.” (1982) e “Esqueceram de Mim” (1990), era a missão dos engravatados.
Espiritualidade e grandes risadas
O ano de 1993, por fim, foi uma temporada feliz, em especial para a Columbia, então se recuperando de baques sucessivos. “Drácula de Bram Stoker” tivera uma boa carreira nos cinemas e em casa no ano anterior, mas a ideia era expandir o escopo.
A grande aposta do estúdio era a fantasia “O Último Grande Herói”, com Arnold Schwarzenegger. Mas seu calendário trazia ação (“Risco Total”), suspense (“Na Linha de Fogo”), drama (“Questão de Honra”) e comédia romântica (“Sintonia de Amor”).
“Feitiço do Tempo” chegou às mãos de Harold Ramis no momento em que o diretor buscava se reposicionar como artista. Se como ator ele atingiu o mega estrelado em “Os Caça-Fantasmas” (1984), como diretor sua assinatura ainda era a do sujeito da contracultura, a pessoa que peita o “sistema” com humor, como em “Clube dos Pilantras” (1980) e “Férias Frustradas” (1983).
O fracasso de “Clube Paraíso” (1986) o fez colocar os pés no freio. Ao passar os olhos pelo roteiro de Danny Rubin, porém, Ramis enxergou algo precioso. Havia profundidade temática, havia espiritualidade, mas também espaço para grandes risadas. Ele reescreveu o texto do lado de Rubin e, depois da recusa de atores como Tom Hanks e Michael Keaton, fechou com Bill Murray.
Para quem viveu numa caverna nos últimos 30 anos, “Feitiço do Tempo” acompanha o repórter Phil Connor (Murray, claro) em uma reportagem enfadonha na pequena cidade de Punxsutawney para cobrir o Dia da Marmota. A festividade acompanha toda a cidade vendo o bichinho sair (ou não) de sua toca, o que significa alguns dias a mais de inverno.
A verdade é que Phil é uma pessoa péssima. Um sujeito arrogante, que destrata sua equipe e se considera bom demais para estar naquele fim de mundo cobrindo algo tão banal. Ele briga com sua produtora, Rita (papel de Andie MacDowell), humilha seu câmera (Chris Elliott) e tenta, a todo custo, não cruzar de novo com Ned Ryerson (Stephen Tobolowsky, perfeito). Ele quer voltar para o hotel, dormir e se mandar.
Phil, entretanto, acorda no mesmo dia 2 de fevereiro. Confuso, refaz a reportagem e repete os passos do dia anterior. Sem entender, dorme e acorda, mais uma vez, em 2 de fevereiro. Ele percebe que está preso naquele dia. Nada que ele faça, por mais drástico, tem o menor efeito quando ele abre os olhos na manhã seguinte que é, de fato, a mesma manhã. Para que sua confusão também fosse nossa, o loop temporal nunca é explicado.
Um sucesso nada modesto
Quando Danny Rubin escreveu “Feitiço do Tempo”, ele buscou criar uma reflexão sobre a imortalidade. Nas mãos de Ramis e, principalmente, na interpretação de Murray, o filme se tornou algo muito maior. O projeto passou de uma viagem, por vezes cínica e maldosa, sobre todas as etapas da perda – negação, raiva, barganha, depressão e, por fim, aceitação – para se tornar também um conto sobre o poder redentor do amor.
O público respondeu a “Feitiço do Tempo” de forma modesta. Mantendo-se em cartaz como programa alternativo aos filmes que iam tomando as telas, a produção transformou seu orçamento de pouco menos de US$ 15 milhões em uma bilheteria global de pouco mais de US$ 100 milhões.
O resultado financeiro, entretanto, é assunto para os contadores do estúdio. O que importa é o que aconteceu depois. Nos anos seguintes, “Feitiço do Tempo” passou a ser reavaliado além das limitações que o mercado geralmente impõe a filmes do gênero. Uma comédia, muitos acreditavam (e ainda acreditam), não é espaço para reflexão, não é espaço para profundidade.
A alquimia entre Harold Ramis e Bill Murray, contudo, subverteu o jogo. O processo foi complicado, com os dois discutindo diariamente sobre detalhes por vezes insignificantes que iam além da história a ser contada. Bill, atravessando um divórcio complicado, passou a se comportar de forma mais e mais errática, não apenas com atrasos constantes no set mas também com pedidos constantes de revisão do texto.
Ao longo da filmagem, cenas inteiras (e caras) foram rodadas e depois descartadas. Personagens iam e viam, e fragmentos inteiros de texto eram deslocados por diferentes pedaços do roteiro, por vezes desaparecendo por completo. O restante do elenco e da equipe tentavam manter o fluxo e equilibrar as duas personalidades. Às vezes é preciso de caos para gerar beleza.
O legado de “Feitiço do Tempo” não demorou a ser observado na indústria. Em especial Bill Murray, que passou a ser visto não apenas como um comediante estridente e carismático, mas também como um ator capaz de exibir complexidade em seu trabalho. Sua atuação em “Encontros e Desencontros” (2003) e sua parceria longeva com o diretor Wes Anderson são fruto direto de seu dia interminável em Punxsutawney.
Fantasia e comédia, a mistura que deu samba
Os fãs do filme, por sua vez, passaram a debater o quanto o Dia da Marmota de Phil Connors de fato durou. À época do lançamento do filme, Harold Ramis teorizou que o repórter passara dez anos preso no loop temporal. Com o tempo, porém, e observando todas as habilidades que ele aperfeiçoa ao longo do filme, como falar francês e tocar piano, a conta aumenta para 12.400 dias. Cerca de 34 anos repetindo, sem parar, o mesmo dia.
Hollywood percebeu que misturar fantasia e comédia podia garantir uma receita duradoura, e os estúdios logo investiram no gênero em filmes como “O Mentiroso” (1997) e “Click” (2006). O próprio conceito de dia eternamente repetido foi popularizado, encontrado em filmes tão diferentes como “Contra o Tempo” (2016), “No Limite do Amanhã” (2014), “A Morte Te Dá Parabéns” (2017) e “Palm Springs” (2020).
De todos os filmes citados na mesma frase de “Feitiço do Tempo”, porém, existe apenas um que acredito ser mais adequado. Em 1946, Frank Capra filmou “A Felicidade Não Se Compra” e mostrou a jornada redentora de um homem. Era uma trama fantástica tecida em torno de um drama por demasiado humano. Capra criou um dos clássicos absolutos do cinema. Harold Ramis e Bill Murray, com talento, sensibilidade e humor, não ficam muito atrás.
Pena que os dois jamais tiveram a oportunidade para revisitar sua obra. Pouco depois do fim das filmagens, Murray cortou todos os laços com Ramis. Parou de se referir a ele em entrevistas. Ignorava seu nome quando mencionavam seus trabalhos juntos, como “Almôndegas” (1979), “Clube dos Pilantras” (1980), “Recrutas da Pesada” (1981) e, claro, “Os Caça-Fantasmas” (1984).
Foi o fim de uma parceria profissional e pessoal de mais de 20 anos, com Murray removendo Ramis por completo de sua vida. Um reencontro só foi acontecer pouco antes da morte de Ramis, em 2014 – muito doente, ele estava impossibilitado de caminhar ou falar. Para não perder a piada, Bill levou donuts sendo acompanhado por escolta policial. Passaram horas juntos. Alguns dias, ao contrário de “Feitiço do Tempo”, não são longos o bastante.