Na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 1º de janeiro, um coro gritava “sem anistia”, pedindo que eventuais crimes cometidos pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) não fiquem impunes.
Como fazer isso em um cenário em que mais de 58 milhões de pessoas votaram no candidato derrotado, ao mesmo tempo em que se promete reunificar um país dividido politicamente? “É um grande desafio”, responde um ex-promotor argentino com alguma experiência nisso. “Mas crimes são crimes. E a Justiça não pode ser uma ferramenta política.”
Quem diz isso é Luis Moreno Ocampo, 70, responsável por colocar na prisão generais da última ditadura militar da Argentina, que durou de 1976 a 1983, em um tribunal histórico que ficou conhecido como “Julgamento das Juntas”. O julgamento é o tema do filme “Argentina, 1985”, vencedor do Globo de Ouro e indicado do país na pré-lista do Oscar.
Ocampo, primeiro promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional, reconhece que “em um país tão dividido politicamente pode ser complicado” levar a cabo julgamentos, mas que “crimes são crimes, e é preciso ser criativo” para encontrar soluções de modo a fazer justiça. “Talvez uma comissão internacional que ajude a estabelecer os fatos de forma objetiva”, sugere.
O Julgamento das Juntas foi o primeiro e, por isso, o mais importante de sua carreira, afirma o argentino, que afirma ter tirado uma lição importante do processo. “Um julgamento assim tem várias frentes. Uma é ganhar o caso diante dos juízes. Outra é a comunicação, é preciso comunicar com o público para obter apoio”, diz, citando que uma comunicação clara poderia ajudar em uma possível apuração no Brasil.
Ao lado de Julio Strassera (interpretado nos cinemas por Ricardo Darín), Ocampo (vivido por Peter Lanzani) conseguiu condenar à prisão perpétua o general Jorge Videla, presidente de 1976 a 1981, e o almirante Emilio Eduardo Massera, além de ter levado outros militares de altas patentes a receberem penas de anos na cadeia —houve uma série de indultos aos generais nos governos seguintes.
“Com uma comunicação clara, minha mãe acabou virando termômetro do que pensavam as pessoas sobre o julgamento”, lembra Ocampo —de família de militares, percebeu que a opinião pública começava a virar quando sua mãe, que ia à igreja com Videla, passou a apoiar o tribunal, em cena retratada no filme.
A eleição de Raúl Alfonsín, primeiro civil eleito após a ditadura, depois de prometer que julgaria os crimes militares, era uma mostra de que a população apoiava o tribunal, afirma Ocampo. “Votaram nas eleições de 1983 para que Alfonsín investigasse o passado, e ele o fez imediatamente. O peronismo se somou, havia um consenso popular.” Não sem tensão política, porém. “Os militares haviam interrompido a democracia algumas vezes nos 50 anos anterior, ou seja, havia receio de que o fizessem outra vez.”
Uma espécie de comissão da verdade foi instalada, a Conadep (Comissão Nacional sobre a Desaparecimento de Pessoas), que juntou depoimentos sobre crimes cometidos por agentes do Estado em todo o país. Estima-se em até 30 mil o número de mortos e desaparecidos na ditadura argentina.
“Na nossa tarefa como promotores, o desafio foi como transformar relatos em evidência jurídica, que permitissem mostrar a conexão entre milhares de crimes de sequestro, tortura e homicídio e o governo, como conectá-los com os comandantes”, conta.
Ao fim do Julgamento das Juntas, em 1985, Ocampo continuou trabalhando como promotor em outros casos envolvendo militares, e em 2003, enquanto dava aulas na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, foi eleito primeiro procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional.
Na corte, atuou em casos envolvendo Muammar Gaddafi na Líbia e acusou o então ditador do Sudão Omar al-Bashir por genocídio e crimes de guerra, entre outros casos.
Questionado pela Folha se é possível acusar Bolsonaro de genocídio, como afirmam seus opositores em relação à sua gestão durante a pandemia de Covid-19, Ocampo afirma que a dificuldade é provar que Bolsonaro tinha a intenção de provocar mortes, o que é crucial para tipificar o crime. “O ponto é se ele teve a intenção de matar 700 mil pessoas ou se pelo menos sabia que isso aconteceria e aceitou. É preciso provar isso. Para classificar de genocídio, é preciso haver intenção”, explica.
Hoje, Ocampo dá aulas em um curso de cinema em Los Angeles, em uma disciplina que analisa narrativas audiovisuais de guerra, crime e justiça. Ele se se diz empolgado com o sucesso do filme que protagoniza indiretamente. A obra “fala não só da Argentina em 1985, mas do estado da democracia no século 21”, afirma, citando os ataques às sedes dos Três Poderes no último fim de semana em Brasília.
“A democracia está sob fogo nos Estados Unidos, no Brasil, na Europa, em muitos lugares. O filme tem justamente um impacto mundial por isso. Estamos vivendo um século 21 onde nossos sistemas democráticos precisam revitalizar-se e rejuvenescer”, diz.
Para ele, a ausência de julgamento dos crimes da ditadura brasileira implicou em uma transição democrática incompleta. “O Brasil teve uma Comissão da Verdade, mas não teve um julgamento. Nos anos 1980, os professores de ciências políticas recomendavam reações como a do Brasil ou a da Espanha; acordos, não se investigar o passado. O que Alfonsín fez foi revolucionário. O julgamento consolidou a democracia”, afirma.