Parece proposital, mas é só uma coincidência, diz o jornalista Paulo Markun, diretor da série documental “Diretas Já”. A produção, que trata da luta pela democracia no Brasil entre os anos 1960 e 1980, estreia neste sábado (14), seis dias após as invasões golpistas às sedes dos três Poderes, em Brasília.
Segundo Markun, a decisão da TV Cultura de exibir a série de seis episódios havia sido tomada no ano passado. A emissora apresenta uma parte por semana, sempre aos sábados, às 22h30, até 18 de fevereiro.
Os anos de 1983 e, principalmente, 1984, quando a campanha pelo voto popular para presidente da República tomou o país, ganham observação mais detalhada da série.
A produção, no entanto, abarca um período mais amplo, levando o espectador até a década de 1960, quando houve o golpe (1964) e o AI-5 (1968), o “golpe dentro do golpe” nas palavras do cientista político Marco Aurélio Nogueira, um dos entrevistados.
É oportunidade para lembrar ou relembrar como foi custosa e repleta de sobressaltos a reconquista da democracia no país, perigosamente posta à prova nos ataques golpistas do domingo (8). Vale outra vez o clichê sobre nossa desmemória: “O Brasil esquece muito rapidamente o que viveu no passado”, comenta Markun.
A série faz essa viagem no tempo com registros antigos em vídeo e foto e, principalmente, por meio de 143 depoimentos exclusivos. Aparecem nomes da política, como os ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, jornalistas e artistas que participaram daquelas mobilizações, como a cantora Fafá de Belém e a atriz Maitê Proença.
Todas as entrevistas foram realizadas em 2014, com exceção da feita com o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, ouvido pela produção três anos depois. “As Diretas foram o movimento cívico mais importante de que eu participei neste país”, diz ele no primeiro episódio.
A série ficou pronta em 2018, mas só foi liberada recentemente para exibição por conta de impasses burocráticos.
Os entrevistados incontornáveis (pelo protagonismo que assumiram) surgem ao longo dos seis episódios, mas um dos trunfos da produção é trazer à tona figuras conhecidas apenas em âmbito local. Entre as dez viagens feitas por Markun e sua equipe, um dos destinos foi Abreu e Lima, na região metropolitana do Recife, onde aconteceu —e poucos sabem disso— o primeiro comício pelas Diretas, em 31 de março de 1983.
Responsáveis pela organização do evento, os quatro vereadores do MDB da cidade convidaram autoridades estaduais para a mobilização, mas ninguém apareceu com medo da repressão dos militares. Pelo mesmo motivo, o único fotógrafo profissional da Abreu e Lima não deu as caras, ou seja, não há registros visuais desse momento pioneiro.
Eles estimam que o comício na pequena praça da cidade pernambucana tenha recebido não mais que cem pessoas. Menos de um ano depois, manifestações em São Paulo, Rio e Belo Horizonte, entre outras capitais, reuniram centenas de milhares de pessoas.
Outra preocupação de Markun ao longo da produção foi ressaltar a relevância de figuras como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro e Thales Ramalho, que se opuseram à ditadura militar dentro da política partidária.
“Alguns setores que apostaram na luta armada –uma opção equivocada, na minha opinião– buscam reduzir a importância de iniciativas protagonizadas pelo MDB naquele período”, afirma o jornalista. “Não quero desvalorizar as intenções daqueles que se envolveram na luta armada, mas é preciso reconhecer a força de ações como o lançamento da anticandidatura de Ulysses à Presidência, em 1973.”
Em 16 de abril de 1984, o último grande comício antes da votação da emenda Dante de Oliveira ocupou todo o vale do Anhangabaú, em São Paulo. “Uma epifania”, lembra FHC.
Pouco mais de uma semana depois, na madrugada de 25 para 26 de abril, a proposta saiu derrotada na Câmara dos Deputados. Foram 298 os parlamentares que disseram sim e faltaram apenas 22 votos para a aprovação da emenda.
Os brasileiros voltariam, enfim, a votar para presidente da República em 1989, após um hiato de 29 anos.
Imprensa
Jorge da Cunha Lima (1931-2022), um dos coordenadores do movimento da Diretas em São Paulo, está entre os entrevistados da série que exaltam o papel da Folha, o primeiro grande veículo de comunicação a se engajar naquela campanha.
Além de dedicar espaço amplo ao noticiário sobre os comícios, afirmou Cunha Lima, a Folha atuou como “veículo convocador” das manifestações.
Essa memória sobre a atuação da imprensa naquele período aparece no sexto episódio, que destaca ainda a cobertura feita pelo Jornal da Tarde, diário do Grupo Estado que deixou de circular em 2012.