O que Shakespeare e os Beatles têm em comum? Mais do que você imagina

Livro de José Roberto de Castro Neves encontra convergências e propõe reflexões acerca desses gigantes da cultura inglesa e mundial

É longa e sinuosa a estrada do tempo (quase 400 anos) que separa William Shakespeare dos Beatles e há mais mistérios no caminho do que pode sonhar a nossa filosofia. Desfiladeiros da alma, paraísos artificiais, rios de lágrimas, poços profundos de sabedoria e um mar de alegrias compõem a paisagem. O ticket para embarcar ou a licença para dirigir? Ter coragem de encarar a questão que desde a virada do século 16 para o 17 motiva os viajantes destemidos e intriga a humanidade: to be or not to be(atles)?

A partir de agora, quem estiver disposto a entrar nessa aventura contará com um divertido e inteligente manual de navegação, feito tanto para iniciados quanto para pilotos de primeira viagem: Shakespeare e os Beatles – O Caminho do Gênio (editora Nova Fronteira), livro que acaba de ser lançado por José Roberto de Castro Neves, escritor, advogado, professor universitário e, claro, fã do poeta e dramaturgo e do mais famoso grupo de rock de todos os tempos. Escrita de forma ágil e divertida, a obra traça paralelos, encontra convergências e propõe reflexões acerca desses monstros da cultura inglesa e mundial.

Na busca por um denominador comum que aproxima seus personagens, Castro Neves sacode a poeira da erudição que a academia depositou ao longo dos séculos sobre o Bardo e, em sentido oposto, atravessa o nevoeiro da cultura pop comercial rumo à densidade poética e intelectual dos Fab Four, para além da fase “reis do iê-iê-iê”. “Há algum tempo, de fato, percebi que Shakespeare e os Beatles haviam trilhado caminhos comuns. Não se trata de uma tese, mas de uma declaração de amor. Curiosamente, não percebi isso olhando para eles, mas olhando para mim mesmo, numa viagem introspectiva. É a essa mesma viagem que convido o leitor”, escreve ele na introdução do livro. Get a ticket to ride!

Para pegar o embalo necessário até a velocidade de cruzeiro, a obra inclui minibiografias de Shakespeare (1564-1616) e dos Beatles (1960-1970), contexto histórico-social em que os perfilados surgiram e atuaram e discorre, em tom ensaístico, sobre a questão da genialidade na arte. Sem titubear, o autor crava uma premissa básica: o Bardo e o quarteto (ele os trata como uma coisa única) foram gênios. Ponto final.

Castro Neves também mostra que um fermento artístico muito parecido com o do período elisabetano, do final do século 16, usado nos finos biscoitos do dramaturgo e poeta, também faz crescer o bolo dos quatro rapazes de Liverpool, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, em meados do século 20. Foi o fermento da educação e da liberdade, resguardadas as devidas proporções históricas. “Esses caras só conseguiram desabrochar numa sociedade que valorizava o artista. Isso é uma lição o importante para qualquer sociedade, o novo Shakespeare pode estar por aí, por exemplo. A educação é o que pode nos tirar deste buraco”, diz o autor

Feitas essas considerações, a partir desse ponto, o autor coloca em pé o grande feito de seu livro, investigar e apontar as semelhanças entre o percurso criativo de Shakespeare e dos Beatles, até formarem suas obras monumentais e saírem de cena para entrarem na eternidade artística: o aprendizado, a juventude, a construção da entidade e as três fases finais, denominadas por ele de Melancolia, Maturidade e Despedida. “O bacana do artista é quando ele está se desenvolvendo. Aquele cara que só fez uma música, só tem um quadro, esse não é o verdadeiro artista, teve um lampejo. O verdadeiro artista está sempre querendo mudar”, diz Castro Neves ao Estadão.

As trajetórias e suas convergências são ilustradas pelas peças do Bardo e os álbuns do quarteto fantástico. Esse é o grande barato da coisa toda, especialmente para quem curte a bardolatria ou é beatlemaníaco ou ambos. Em linhas gerais, as obras da juventude (peças e álbuns fonográficos) estão encharcadas pela influência de outros artistas, predecessores e contemporâneos aos perfilados no livro. No caso de Shakespeare, os dramaturgos Christopher Marlowe (1564-1593) e Thomas Kyd (1558-1594); no dos Beatles, Chuck Berry (1926-2017), Buddy Holly (1936-1959) e Roy Orbison (1936-1988). São dessa fase, segundo o livro, sucessos shakespearianos como A Megera Domada, A Comédia dos Erros e Tito Andrônico. Do lado do quarteto, o estrondoso Please Please Me.


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Na fase Juventude, situam-se de um lado O Mercador de Veneza, Sonho de Uma Noite de Verão e, do outro, A Hard Day’s Night e Beatles for Sale. É a fase de afirmação do sucesso e início do reconhecimento comercial, digamos assim. Aliás, outro achado do livro é evidenciar como a genialidade artística não é incompatível com o sucesso. Segundo diz Castro Neves, Shakespeare e os Beatles foram “conservadores, porém inovadores”, e nisso reside grande parte de seu apelo.

A virada

A fase da Construção da Identidade está pontuada por duas obras seminais: Help e Julio Cesar. A peça sobre o assassinato do imperador romano abriu caminho para as grandes tragédias shakespearianas, e o álbum de 1965 para a sequência (encerrada com Abbey Road e Let It Be) de lançamentos dos Beatles que até hoje motiva simpósios e divide famílias em torno de qual dos discos é melhor.

Portanto, as três fases seguintes do livro, Melancolia, Maturidade e Despedida, abordam o ápice da produção de Shakespeare e dos Beatles (com George Harrison devidamente integrado a Lennon e McCartney como compositor). Nada mais nada menos do que as peças Hamlet, Rei Lear, Macbeth e Otelo, e os álbuns Rubber Soul, Revolver, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, White Album e os já citados Abbey Road e Let It Be estão situados nesses capítulos do livro. “Comecei a perceber que o caminho que eles percorreram seguia um padrão, que é o padrão da nossa vida também, a nossa história é essa também”, diz Castro Neves.

Rubber Soul, por exemplo, se equivale a Hamlet, na visão do autor. Ao final, o livro mostra como Shakespeare e os Beatles souberam compreender o fim de seus ciclos, não sem dor, claro, mas cobertos de glórias e com uma certa consciência do dever artístico cumprido. Apesar de a estrada ser longa e sinuosa, como diz a letra de The Long and Winding Road, ela leva sempre ao mesmo lugar, à essência das questões humanas, ao nosso “ser ou não, eis a questão”, de todos os dias. Os Beatles e Shakespeare são eternos porque tratam da quintessência do ser humano, em qualquer tempo, em qualquer lugar.


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Afinal, eles existiram?

A transcendência dos Beatles e de Shakespeare é tamanha que Castro Neves chega a perguntar: eles existiram? No caso do Bardo, a questão faz sentido. Houve uma época em que foi moda afirmar que o nome Shakespeare era, na verdade, uma espécie de pseudônimo usado por diferentes personalidade, como o filósofo Francis Bacon (1561-1626). Castro Neves usa a história para ilustrar a dificuldade do mundo em aceitar a genialidade de alguém que nem sequer chegou a cursar uma universidade.

Raciocínio semelhante ele aplica aos rapazes de Liverpool, com a lenda da morte de McCartney em 1966. O escritor também encontra similaridades em tragédias familiares de Shakespeare e, especialmente, de Lennon. Mostra como a perda do filho impactou a obra do dramaturgo, citada na peça Vida e Morte Prematura do Rei João. Lennon compôs Julia, do Álbum Branco, em homenagem à mãe, de mesmo nome, morta em 1958.

Shakespeare e os Beatles

Autor: José Roberto de Castro Neves


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Editora: Nova Fronteira

240 páginas

R$ 49,90


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