A natureza do governo – 02/12/2022 – Demétrio Magnoli

O Brasil é um país de conceitos políticos difusos, em perene fluxo. Por aqui, fala-se de presidencialismo de coalizão, semipresidencialismo e semiparlamentarismo. Hoje, assegura-se que teremos um governo de frente –e adjetivada, ao sabor das conveniências, como “ampla” ou “democrática”. Entre nós, a linguagem serve mais para iludir que para comunicar.

No segundo turno, configurou-se em torno de Lula uma frente eleitoral, que merece o qualificativo “democrática” por apoiar-se na repulsa ao golpismo da extrema-direita bolsonarista. Contudo, em momento algum articulou-se uma frente política.

Uma frente política repousa sobre um programa comum negociado por diferentes partidos. Durante a campanha do segundo turno, Lula anunciou a incorporação de algumas propostas de Simone Tebet e de Ciro Gomes, mas não modificou o núcleo de sua plataforma econômica, exposta em discursos e declarações públicas. “Governo de frente” sem programa comum é, na hipótese mais benevolente, a expressão de uma utopia pervertida.

Em tese, Lula poderia governar exclusivamente com sua coligação eleitoral. Contudo, essa frente de esquerda não é viável pois falta-lhe um mínimo de sustentação no Congresso.

Uma alternativa seria a construção tardia de uma frente democrática, por meio da formulação de um programa de consenso capaz de reunir os diversos partidos e facções partidárias que constituíram a frente eleitoral do segundo turno. Lula teria que ceder em pontos relevantes de suas promessas de campanha, especialmente na esfera da política econômica. No governo de centro-esquerda resultante, o PT teria forte influência, mas não a palavra final.

O pacto firmado entre Lula e Arthur Lira evidencia que o presidente eleito escolheu um terceiro caminho, enraizado no solo pútrido da tradição política nacional: uma ilusória frente ampla. Seu governo será de frente e, simultaneamente, não o será. Não será porque prescindirá de um programa negociado com os parceiros. Será porque derivará da cooptação em massa de partidos e grupos parlamentares.

O tortuoso expediente destina-se a circundar a negociação política, substituindo-a pelo loteamento da máquina estatal. “Uma mão lava a outra”, como quer o neoaliado Lira, cujas prioridades absolutas são a sua reeleição para o comando da Câmara e a manutenção do “orçamento secreto”.

A PEC da Transição ilumina a estratégia de Lula. O objetivo prioritário do novo governo é libertar-se das amarras fiscais que limitam o gasto público. Trata-se de concluir, a qualquer custo, o serviço conduzido pelo governo Bolsonaro. O preço econômico será pago sob a forma de juros maiores e crescimento menor. O preço político, pela inclusão no governo de correntes que apoiaram Bolsonaro e pela eternização do orçamento secreto.

A responsabilidade política vai para o ralo para a responsabilidade fiscal poder ir para o ralo. A frente sem programa será muito ampla, estendendo-se do PSOL ao PP, mas não faz jus ao adjetivo “democrática”.

Nos mandatos anteriores de Lula, o chamado “presidencialismo de coalizão” notabilizou-se por instabilidade estrutural, que foi solucionada por vias ilegais (mensalão e petrolão). Sua nova versão sofrerá do mesmo defeito inato. A direita bolsonarista ou semibolsonarista extrairá sucessivas concessões do Executivo, usando como moeda de troca o apoio circunstancial a propostas enviadas ao Congresso.

De volta ao passado –ou seja, à estranha aliança entre a esquerda e o centrão dos anos do lulismo triunfante?

Não exatamente. A novidade é a persistente agitação golpista da extrema direita. A ameaça à democracia que produziu a frente eleitoral em torno de Lula não evaporou com a apuração. Paradoxalmente, Lula precisa dos bolsonaristas nas ruas, em estado de permanente excitação. A ficção de um governo de frente democrática depende deles.


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