Na comédia “Heróis Muito Loucos”, de 1999, Wes Studi interpreta o Esfinge, um super-herói cujo superpoder é ser “muito misterioso”. É isso. Ele dispara obviedades em um tom sóbrio e monocórdico e a turma revira os olhos enquanto Wes faz cara de paisagem.
“1899”, série dos criadores de “Dark”, é mais ou menos como o Esfinge. Em oito episódios, a dupla Jantje Friese e Baran bo Odar rabisca uma trama com um verniz de mistério e sofisticação que, no fim, é um apanhado de platitudes disparadas com a lerdeza de um bicho-preguiça.
Há de se admirar, no entanto, a habilidade de Jantje e Baran em maquiar sua total falta de ideias como algum produto revolucionário. No caldeirão de “1899” encontramos realidades paralelas, tramas e personagens que se sobrepõem e uma reviravolta fantasiosa que não surpreende mais ninguém.
Até porque você já viu a história de “1899” antes, só que com outro nome e feita por gente muito mais talentosa. Existe uma pitada de “Matrix”, um tempero de “Dark City”, um climão de “Manifest” e “The OA”. A diferença é que nenhum destes filmes ou séries confunde trama confusa com premissa inteligente.
Não que navegar por conceitos similares de fantasia e ficção científica seja pecado. Símbolos e signos recorrentes em produtos do gênero podem criar a ilusão da repetição das mesmas ideias – e tudo bem. A criadora da série de quadrinhos nacional “Black Silence” chegou a apontar semelhanças de seu trabalho com a criação de Jantje e Baran.
“1899”, entretanto, não partiu de trabalhos alheios para ser medíocre com méritos próprios. A trama acompanha tripulação e passageiros do navio Kerberos, uma coleção extremamente distinta de línguas, castas, anseios e costumes, que viajam de Londres para Nova York às vésperas do século 20.
Em uma viagem de cores dessaturadas, o Kerberos cruza, em meio ao oceano, com um navio desaparecido meses antes, o Prometheus. À deriva, e sem o menor sinal de seres humanos a bordo, o ressurgimento da embarcação fantasma é o gatilho para desencadear uma série de segredos e mistérios, sugerindo que nada pode ser exatamente o que parece.
Parecia uma boa ideia. Até ficar claro que não havia ideia nenhuma. Em episódios de uma hora que parecem durar semanas, “1899” arrasta sua trama absolutamente desinteressante, povoada por personagens incapazes de criar qualquer conexão, como o fantasma de Natais passados e sua corrente pesada.
Quanto mais o mistério se desdobrava, mais eu via minha atenção desviada para os latidos do meu cachorro ou para as figurinhas que eu precisava colar no álbum da Copa. Terminar cada capítulo se mostrava um martírio fisicamente doloroso. Pouco antes de chegar à conclusão no episódio 8, joguei a toalha. A louça na pia precisava de minha atenção.
Em 2004, “Lost” fez história ao transformar um grande mistério em um sucesso na TV aberta nos Estados Unidos. Antes do streaming, antes do advento das redes sociais, a série de Jeffrey Lieber, J.J. Abrams e Damon Lindelof misturou drama de sobrevivência e ficção científica e reescreveu a história da TV.
Dúzias de novas séries buscaram reproduzir o clima fantástico de “Lost”, com maior ou menor sucesso. O programa que acompanhava sobreviventes da queda de um avião comercial em uma ilha perdida no Pacífico Sul, apesar do começo absolutamente brilhante, ruiu ante o peso do próprio sucesso. Sua sexta temporada, completando um total de 121 episódios, foi recebida não como uma celebração, e sim como um alívio.
A estrutura seguida pelo streaming, que dá a séries modernas uma média de oito episódios por temporada, ajuda a disfarçar a fragilidade de sua trama ao compactar arcos dramáticos e desenvolvimento de personagens. No caso de “1899”, são ao menos duas dezenas de rostos que precisam de um mínimo de exposição para serem encaixados na história.
Minha teoria é que as plataformas alimentam essa superficialidade para benefício próprio. Mal foi desovada em streaming e “1899” já engorda incontáveis canais e podcasts de “influencers” para perfilar seus protagonistas, para explicar cada cena. É uma simbiose de apetite interminável em que ninguém entende nada e todo mundo balança a cabeça. Propaganda ruim ainda é propaganda.
Não que a produção televisiva da segunda década do século 21 se resuma a ideias superficiais e pedantes. “Black Mirror” consegue, como antologia, ser urgente e culturalmente relevante. “Orphan Black” flerta com a estética biopunk em um drama sobre perda de identidade. Mike Flanagan já cravou três séries de terror de qualidade indiscutível.
“1899”, por sua vez, parece ser fruto unicamente de criação por algoritmos. Cada passo do roteiro não obedece a um crescendo dramático, e sim a movimentos em que uma tabela conduz o que supostamente estimula seu público. A grande “surpresa” da série parece telegrafada desde seu primeiro episódio – podem mandar spoilers, não vou reclamar. “Dark” já não era grande coisa. “1899” foi o benefício da dúvida. Dificilmente darei uma chance para um terceiro strike assinado por Jantje e Baran.