Torcer pelo Brasil – 26/11/2022 – Antonio Prata

Talvez os grupos de WhatsApp estejam para a humanidade como o meteoro para os dinossauros. Ao contrário do meteoro, porém, que fez a atmosfera virar uma panela de pressão a mais de 400 ºC, matando em minutos todos os répteis gigantes que dominavam a Terra havia 200 milhões de anos, o grupo de Zap assassina devagarinho. Frase a frase. Meme a meme. Emoji a emoji.

Imagino Deus e o Diabo conversando, naquele clima de brodagem com que tramaram os suplícios de Jó, sobre como destruir a humanidade. “Torre de Babel foi bom”, diz Javé. O Demo se empolga. “Foi da hora! Mas e se a gente meter o contrário? Em vez de fazer com que as pessoas não se comuniquem, vamos facilitar a comunicação! Vamos deixar que as mentiras fluam como folhas na corredeira! Vamos pegar o oitavo mandamento, ‘não levantarás falso testemunho’, inverter e tacar anabolizante!”.

Sou uma pessoa pacífica, por princípios: o princípio de que com 1,69 m e sete graus de miopia, é sempre menos dolorido engolir o orgulho do que os próprios dentes. No WhatsApp, porém, acumulo MMAs –e já sou banguela. WhatsApp é um bonde que todo mundo pega andando, quer sentar na janelinha, ninguém vê a cara de ninguém, cada um dá seu pitaco sem saber da missa a metade e ainda ganha pontos narcísicos a cada lacração. Isso não é uma ferramenta, é uma arapuca –na qual eu sempre caio.

Os romances epistolares são um gênero literário frondoso. “Caixa preta”, do Amos Oz. “Carta a D.”, do André Gorz. O excelente e pouco conhecido “A Utopia Burocrática de Máximo Modesto”, de Dionísio Jacó –um Kafka tupiniquim. Há dezenas de exemplos. O WhatsApp, contudo, oferece nuances com que a troca de cartas jamais sonhou.

Num grupo de Réveillon, no papo sobre as compras do café da manhã, a Camila digita “vou comprar bisnaguinha pras crianças, beleza?” e aparece o Fernando digitando e apagando, digitando e apagando, digitando e apagando. O grupo todo lê ali a crítica do Fernando à bisnaguinha da Camila pras crianças, a crítica do Fernando à Camila enquanto mãe, metade do grupo já tá achando o Fernando um mala, machista, arrogante, a Carol escreve.

“Bisnaguinhaaaaaa!” e é como uma facada feminista girl power nas costas do Fernando.

Para minha sorte, o grupo da família Prata teve apenas seis mensagens. Primeira, Ruth, minha super madrinha, sempre cuidadosa com todos: “Queridos Prata! Fiz aqui esse grupo para estreitarmos nossos laços e trocarmos experiências”. Segunda mensagem, Zé Maria, o tio caçula, com a empolgação que lhe é peculiar: “Aeeeeeeee seus Prata viadoooooooooooooooo!”.

Terceira mensagem, Ruth, novamente: “Zé, este grupo não vai aceitar mensagens homofóbicas ou preconceituosas”. Quarta, Zé Maria, novamente: “Ah, Ruth, vai a merda!”. Quinta mensagem, Francisco, filho da Ruth: “Zé, ‘à merda’ tem crase”. “Ruth saiu do grupo”, “Zé Maria saiu do grupo”, “Francisco saiu do grupo” e nós outros sete Pratas saímos do grupo também.

Levou mais de dois anos para que o Chiquinho (“Zé, ‘à merda’ tem crase”) criasse o “Primazia”, só pra nova geração dos Prata. Lentamente, porém, fomos incorporando os pais e tios, agora mais calmos. Passamos incólumes pelas eleições. Não será na Copa que vamos brigar. Ainda mais com o Richarlison fazendo esses gols, repatriando o verde e amarelo e a camisa da seleção canarinho. Ruth, “seus Prata viadoooooooo” e todo mundo: que alegria voltar a torcer pelo Brasil! Em todos os sentidos.


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