Os direitos dos povos indígenas e os ataques a defensores de direitos humanos, ativistas ambientais e jornalistas estiveram entre os pontos de que o Brasil foi alvo de críticas na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU que examinou o estado dessa área no país.
Chamado de Revisão Periódica Universal (RPU), o encontro desta segunda-feira (14), em Genebra, na Suíça, reuniu representantes de 122 países e integrantes do governo de Jair Bolsonaro (PL).
Ao longo de mais de três horas, governos internacionais comentaram, de forma geral, a situação brasileira, expondo preocupações e indicando recomendações para serem adotadas nos próximos anos. A RPU é realizada a cada 4 anos e meio —o país já passou pelo processo nos ciclos de 2008, 2012 e 2017— e já estava programada para agora, coincidindo com o fim do período eleitoral e com outros fóruns que acabaram por reforçar o isolamento do presidente, a exemplo da COP27, no Egito, e do G20, na Indonésia.
Os povos indígenas foram citados por mais de 25 países, em falas de Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Canadá, Austrália, Paraguai e Peru. Além de citações amplas sobre a necessidade de reforçar a proteção dessas comunidades, houve referências explícitas sobre a demarcação de terras —tema de resto ignorado na gestão Bolsonaro, que prometeu zerá-las.
Diversas intervenções também recomendaram mais atenção para combater ataques a defensores de direitos humanos, ativistas ambientais e jornalistas. Em questões enviadas com antecedência, como parte da preparação para o encontro em Genebra, o Reino Unido foi direto.
“Após os assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, quais os passos o governo do Brasil tomou e planeja tomar para combater o crime ambiental e fortalecer sua proteção aos defensores ambientais e de direitos humanos na Amazônia?”, diz o texto. Os dois foram mortos em junho, no Vale do Javari (AM), em caso de grande repercussão internacional ante críticas à omissão das autoridades durante as investigações sobre o desaparecimento.
Os ataques ao trabalho de jornalistas —prática comum entre o presidente e seus aliados— receberam destaque em comentários, entre outros, de Holanda, EUA, França e Moldova que, citou ainda a recorrência de discursos de ódio no Brasil.
“A comunidade internacional mostrou que tem acompanhado muito de perto todo o governo Bolsonaro, que representou um período de degradação dos direitos humanos”, diz à Folha Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.
Segundo ela, embora o tema da liberdade de expressão e de imprensa faça parte do debate de direitos humanos na ONU, a menção específica à atividade de jornalistas não é comum. “Isso mostra como a sociedade civil, inclusive aqueles que buscam mostrar pontos problemáticos, sofreu perseguição.”
A coincidência da reunião com a troca de governo foi outro tópico presente —e também pouco usual. Mesmo tendo direito de falar por apenas um minuto, alguns representantes, como o Reino Unido e Moçambique, usaram o plenário para comentar a condução do processo eleitoral, que, em diversos momentos, chegou a ser questionado pelo atual presidente.
A pandemia da Covid-19, área em que o governo é mal avaliado internacionalmente depois de quase 689 mil mortes, apareceu tanto nas recomendações para a mitigação dos efeitos na população quanto em menções de necessidade de fortalecimento do Sistema Único de Saúde.
Chefiada pela ministra Cristiane Britto (Mulher, Família e Direitos Humanos), a delegação brasileira resumiu medidas da gestão e comentou alguns tópicos sem mencionar as falas dos demais países.
No encerramento, Britto apontou ações de combate à fome, citando o programa Auxílio Brasil, de combate a violência contra crianças e mulheres e a administração da pandemia, apontando que o governo “disponibilizou vacinas para todos os brasileiros” —omitindo atrasos no processo e falas contrárias a ele do próprio presidente.
Disse ainda que o combate à violência contra a população LGBTQIA+ foi uma prioridade, assim como o combate à corrupção, classificada por ela de “a maior violação de direitos humanos já registrada em nosso país” —também omitindo casos envolvendo integrantes do governo.
Ao concluir, declarou que “o maior diferencial do governo Bolsonaro foi o investimento na família brasileira, com a defesa e a proteção da vida desde a concepção”.
A questão feminina, pelo viés da violência e do feminicídio e pelo direito ao aborto, teve maior espaço em relação a sessões anteriores. Na avaliação de Asano, além do melhor entendimento na ONU de que direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos, a repercussão de casos recentes de dificuldades de acesso ao aborto legal fez com que o assunto entrasse na lista de preocupações e recomendações.
Nas falas, não só ações no âmbito do governo federal são mencionadas. Temas como a demarcação de terras indígenas, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, ou a tentativa de mudança da Lei Antiterrorismo no Congresso mostram que a proteção dos direitos humanos é transversal no Estado. Mesmo na esfera estadual, questões como a atuação das polícias estiveram presentes.
“O racismo estrutural apareceu muito, sobretudo na fala de países africanos e muito ligado à violência policial. É um recado firme para governadores eleitos”, diz Asano.
Muitas recomendações tiveram o caráter de indicação para a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem, de fato, caberá a implementação do relatório final, que deve ser finalizado no fim de novembro. O novo governo terá até março para se posicionar e definir o que pretende acatar.
“Para a equipe de transição, é preciso entender que a comunidade internacional está muito preocupada com a necessidade de fortalecer os mecanismos de participação da sociedade civil, vistos como forma de fortalecer a democracia.”