A morte nos procura todos os dias”
Mãe Stella de Oxóssi
“Pantera Negra: Wakanda para sempre” já está em cartaz no Brasil. Não dá pra dizer se todos aqui no Ocidente conseguiram assimilar a perda do ator Chadwick Boseman, que interpretou brilhantemente o rei T’Challa e nos deixou precocemente em 2020. O luto é muito específico para cada um, em cada cultura. Mas, na vida real assim como no filme, há um fato que intriga e repercute em nós de maneira inevitável: a morte ainda é o grande mistério da vida.
O novo filme da universo cinematográfico da Marvel ancora a sequência da história nos saberes ancestrais africanos. Ao assisti-lo, não só atravessamos de vez a ponte do luto, como celebramos Wakanda de novo e compreendemos que a ideia de morte não é uma cisão, mas sim uma continuação.
Já no primeiro filme, os ritos que salvaram o super-herói nos deram a dimensão do poder ancestral, que jamais conceberia a morte como um final absoluto. No longa, T’Challa teve que morrer e reencontrar seu pai para se tornar o Pantera Negra. Como em qualquer ritual de iniciação, a perspectiva de uma outra vida se confronta com a morte e, ao enfrentá-la e vencê-la, propicia renovação e renascimento.
A iniciação nos lança à imortalidade e nos liberta da angústia do fim. Pantera Negra é o grande ancestral do povo de Wakanda. É a origem forte e gloriosa para a qual todos esperam merecer retornar na hora da morte.
E o que é a morte senão um mistério? Por mais efetivo que seja, o fim da existência física encontra nos rituais de celebração da ancestralidade a expressão mais completa da vida.
Os sábios das religiões afrobrasileiras ensinam que os iniciados no mistério não morrem, não desaparecem com a morte, vão para o Itunlá, o lugar do renascimento, a casa do mistério. Entendem a morte como uma condição para o renascimento. Para que nos tornemos ancestrais, temos que continuar a existir depois da morte, e a organização da sociedade para o cumprimento dos ritos assegura que a memória coletiva mantenha nossa presença no grupo, apesar da ausência física.
A vida é um mercado, e assim como o mercado, a vida é um lugar de passagem. Ao cumprir o tempo estipulado para nossa permanência, é preciso voltar ao Orun, nossa verdadeira casa. Para que essa transição aconteça de forma digna, os rituais são imprescindíveis.
Tais valores africanos seguem preservados nos terreiros de candomblé, onde a cerimônia do Axexê promove o retorno às origens e completa o ciclo da vida, fazendo nascer um novo ancestral. Aqueles que acreditam na ancestralidade cumprem os ritos de morte para celebrar a vida. Isso significa que toda existência digna e grandiosa será legitimada na hora da morte, exaltando a importância do ser por meio das cerimônias.
Iku, o orixá-morte, encerra a existência física. Porém, ao criar seus deuses, os seres humanos pensaram nos ritos como uma forma de cultivar a memória e reviver (mesmo depois do fim). Os rituais existem para acomodar a morte, e ao arrancá-la do nada, lançam-na ao tempo dos significados. Ao dar sentido a tudo que existe, tivemos também que assumir a morte como uma condição essencial para seguir além ou apesar dela.
Nesses ritos de passagem, todas as realizações de uma liderança são rememoradas durante as celebrações com a intenção de imortalizá-la. Assim, em vez de lamentar a perda, festejamos a ascensão de um novo ancestral. Dessa forma, a posição ocupada por uma pessoa em vida e todos os valores que preconizou ao exercer sua autoridade estabelecem as honras e a proporção de seus funerais.
O desaparecimento de um ídolo, de um rei, de um governante amado e justo exige ritos equivalentes à sua atuação e coragem. Ao celebrar a nobre existência do Pantera Negra, Wakanda não permite a morte de seu herói e o impele a tornar-se histórico.
T’Challa na ficção e Chadwick na realidade: o grande líder mostra que vencer a morte não é apenas ter a prerrogativa de envelhecer, é emprestar à própria vida um sentido tão profundo, tão pleno, que o faz ser lembrado para sempre.
*Rodney William babalorixá, antropólogo, doutor em ciências sociais pela PUC-SP, autor de livros como “Apropriação Cultural” (coleção Feminismos Plurais coordenado pela filósofa Djamila Ribeiro), em português e francês, e membro da Academia de Letras da América Latina. Em 2019, foi escolhido como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo pelo Mipad/ONU.