“Sim, eu sou travesti e preciso reafirmar isso, mas o termo ainda assusta a sociedade”, diz a artista paulistana Flora de Barros, 18.
Como ela, uma nova geração de jovens tem se reapropriado do termo travesti para dar a ele um novo significado. Para esse grupo, a palavra carrega injustamente uma perspectiva negativa imposta historicamente pela sociedade brasileira.
Flora diz que ser travesti é subverter os padrões binários (masculino e feminino) da sociedade. “A minha mulheridade existe porque a minha travestilidade existe”, afirma.
Principal inspiração da artista, a cantora, compositora e atriz Linn da Quebrada, 32, é uma das expoentes desse movimento. Em suas músicas, a funkeira costuma discutir sexualidade sob a ótica das mulheres trans e travestis das periferias.
Bruna Benevides, ativista LGBTQIA+ e diretora da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) diz que travestis são pessoas com uma identidade transgênera, mas que não se reconhecem como pertencentes às identidades binárias.
“Expressam-se como pertencentes ao gênero feminino, mas não reivindicam a identidade feminina, constituindo uma ideia própria sobre mulheridade”, afirma a ativista.
De acordo com Benevides, durante a primeira onda de organização do movimento LGBTQIA+, a travestilidade —termo que só é usado no Brasil— foi definida como variação da homossexualidade.
“Se confundia com gays femininos, criando a ideia de que os travestis, à época, seriam homens vestidos de mulher, o que era referendado pelas definições médicas e jurídicas, além da própria língua portuguesa —com o artigo masculino”, afirma.
Flora de Barros considera que o sentido imposto ao termo foi pautado pela violência. “O termo travesti surge em um contexto de muita violência para machucar nossos corpos. […] A travesti foi logo associada à violência e prostituição”.
Segundo a jovem, essa narrativa se propagou sem contrapontos durante muito tempo, até que o primeiro movimento organizado de travestis iniciou um esforço para transformar o termo em uma palavra de afeto.
Em nota, a Antra afirma que a estigmatização impôs uma separação entre travestis e mulheres trans, gerando constrangimento ao escolher qual termo usar. A transexualidade seria melhor aceita; a travestilidade, renegada.
Com mais de 46 mil seguidores no Instagram, a digital influencer Alicie Bratz, 21, se define como travesti sertaneja —já que mora na cidade de Paulista, no interior da Paraíba. Ela diz que precisou de um tempo para entender o termo antes de se apropriar dele.
“Eu via travestis na televisão e era sempre algo feio. Algo que não deveria existir, sujo, nojento, seboso”, declara.
Em seu processo de aceitação, primeiro Alicie se identificou como homem gay. Mais madura, em 2017, como mulher trans. “Se apresentar como mulher trans parece mais limpo, algo mais cheiroso. Na mídia, a gente só vê notícias sobre sucesso de mulheres trans, nada positivo aparece ligado às travestis”, diz.
A digital influencer afirma que ainda não se sentia completa, já que considerava que nem o termo trans nem a ideia de beleza trans —segundo ela, muito pautado em corpos perfeitos, com hormônios e delicados— a definiam.
Alicie nunca pensou em fazer tratamento hormonal e diz que só queria viver a sua identidade feminina à sua maneira. Por isso, a jovem hoje se afirma travesti. “Eu ressignifiquei o termo e, como outras meninas pelo país, trouxe isso para mim. Para ser travesti, só preciso ser eu mesma. Sem padrões. É forte”, diz Alicie.
No início deste ano, a jovem iniciou seu processo de retificação de nome e gênero com auxílio do PoupaTrans, coletivo que oferece suporte para as alterações documentais, as quais Alicie tentava, sem sucesso, há mais de um ano. “Para ser travesti tem que lutar muito, viu? Mas eu sempre vou levantar essa voz”, declara.