Um festival engajado que, em 2021, mergulha na criação de artistas brasileiros para estabelecer pontes transculturais na discussão das artes cênicas, no coração de um país transcontinental – o Brasil – palco vivo de dilemas políticos, onde a criação é mais do que nunca ameaçada. Esse é o mote dessa edição do Passages Transfestival que celebra seus 25 anos na cidade de Metz, pólo cultural no leste da França.
Um festival engajado que, em 2021, mergulha na criação de artistas brasileiros para estabelecer pontes transculturais na discussão das artes cênicas, no coração de um país transcontinental – o Brasil – palco vivo de dilemas políticos, onde a criação é mais do que nunca ameaçada. Esse é o mote dessa edição do Passages Transfestival que celebra seus 25 anos na cidade de Metz, pólo cultural no leste da França.
No cardápio, artistas brasileiros esquentam o chão da cena contemporânea com performances, teatro, balé e música. Entre eles, criadores como a coreógrafa Morena Nascimento, que assina junto a Lucas Resende o espetáculo “O Vento”, com o balé da Ópera de Metz. A trajetória de Morena começou cedo na dança. Nascida em uma família de bailarinos e coreógrafos, a artista traz consigo uma experiência de 25 anos em palcos brasileiros e internacionais, com passagens por companhias renomadas como a alemã Tanztheater Wuppertal, de Pina Bausch.
“Já faz algum tempo que venho me interessando muito pelo diálogo entre a dança contemporânea e a música contemporânea brasileira, feita no Brasil”, conta Nascimento. “Isso começou com um espetáculo chamado ‘Um jeito de corpo’ que coreografei para o Balé da Cidade de São Paulo, quando experimentei pela primeira vez um mergulho mais profundo em canções brasileiras do Caetano Veloso. A partir daí, fiquei interessada em explorar cada vez mais essa relação”, conta.
Para “O Vento”, espetáculo que a coreógrafa estreia com o balé da Ópera de Metz, Morena decidiu seguir nessa linha de pesquisa com as músicas brasileiras, num diálogo com a vocação transdisciplinar do festival. “A maior inspiração, a maior ignição de criação desse trabalho são as músicas. É como se as músicas trouxessem o tom dramatúrgico do espetáculo, como uma espécie de paisagem ou de qualidade de sentimento, de intenções, de temperamentos para a cena”, detalha.
“Todas as coreografias, todas as cenas, todas as transições de cena foram pensadas a partir das músicas escolhidas de várias épocas, que, acreditamos, traduzem muito bem um aspecto não só artístico mas também político e social do Brasil hoje”, diz a artista. “Eu sempre acreditei que a música brasileira conta a história do Brasil”, afirma.
“Meu trabalho, assim como o do Lucas Resende, sempre foi pautado pela transdisciplinaridade. Dialogamos como várias camadas artísticas, e acreditamos que todas elas num espetáculo de dança – seja luz, imagem, som, espaço, textos, subtexto, movimento ou corpo – tudo isso dialoga de uma maneira horizontal na obra”, avalia Nascimento. “Sobre a transcontinentalidade [do Passages Transfestival], acredito que trazer esse Brasil de hoje para a França é uma forma de diálogo, principalmente durante a pandemia, quando percebemos que pertencemos a um único mundo”, analisa.
O performer e coreógrafo Volmir Cordeiro e o percussionista Washington Timbó trazem para a cena transcultural do Passages Transfestival a vulnerabilidade vivida por alguns corpos no espaço público com o espetáculo “Rua”, que estreou em 2015 no Museu do Louvre, em Paris. “Junto com [Washington] Timbó, estamos preocupados em problematizar de fato que corpo está exposto à violência policial, ao machucado, às dores, e tudo o que está envolvido quando o corpo se expõe na rua, essa vulnerabilidade que é aparecer publicamente”, diz Cordeiro.
“Mas, mais do que isso, a gente quer ver a rua como uma infraestrutura, um espaço que garante a possibilidade de manifestar e de existir como corpo. Estamos os dois expondo uma espécie de conflito transcultural, pelos nossos próprios corpos, pela dramaturgia que os nossos corpos expõem quando se encontram, mediados pelo tambor nessa peça, para abordar justamente essa questão do direito de existir como corpo e de se manifestar, colocando em xeque o conflito de nossos dois corpos ali na cena”, argumenta.
Violência & Carnaval
Volmir Cordeiro trabalha com a transposição de conceitos como festa e violência no espetáculo “Rua”. “Convidei o Timbó para assistir as danças que estava criando a partir de poemas do Bertold Brecht do ‘ABC da Guerra’, com um ímpeto muito forte nas noções de humilhação, de violência, de dor e de guerra, de sangue, de ferida. Ele propôs então de trazer o atabaque para completar com energias de fogo, de vento e de água, elementos que ele reconheceu na cena. As batidas do Timbó vêm para intensificar a violência e a festa, e esse paradoxo que a peça busca abordar em cada cena, misturando sempre violência e carnaval, dentro dessa ideia de que não existe carnaval se não houver morte, assassinato. A mistura dessas duas energias é intensificada pela presença do tambor”, diz o coreógrafo e performer.
Ele acredita que “certos corpos” seguem ameaçados no espaço público. “Tem essa ideia atrapalhada de ‘segurança’ que é produzida e veiculada pela direita e pela extrema direita de que precisamos de mais policiais, penalização e perseguição, sobretudo dos artistas na contemporaneidade”, avalia Cordeiro. “Poderíamos reverter esse ideia de segurança para um conceito mais amplo que garantisse abrigo, educação, cultura, arte, teatro, festa e também mecanismos de enfraquecimento da desigualdade. Quando conseguirmos sair da lógica da segurança que produz medo e que coloca o corpo nesse comércio da segurança. Isso tudo é capitalizado e cooptado por essa lógica policial”, afirma.
“Feijoada”
O bailarino ecoreógrafo Calixto Neto estreia em Metz o trabalho “Feijoada”, que também faz parte do Portrait Lia Rodrigues, coreógrafa brasileira homenageada este ano Festival de Outono da capital francesa.
“Considero o ‘Feijoada’ como um spin off [transposição, derivagem] do ‘Samba do Crioulo Doido’, essa peça que danço desde o ano passado do Luiz de Abreu, criada em 2004. Nesse trabalho, tem uma das cenas onde eu danço ao som de uma bossa nova, com uma receita de feijoada sendo falada em francês. Me interessou mergulhar nessa tensão criada por essa música alegre, essa apropriação que é a bossa nova, falando de uma feijoada. Em cena a gente vê um corpo negro, criando essa ligação entre a carne negra e a carne que faz a feijoada”, diz Neto.
“O ‘Feijoada’ é então um mergulho nas características dessa cena, da alegria e da violência que compõem o nascimento desse prato e até mesmo a nossa história no Brasil”, analisa o coreógrafo. “É uma peça que tem um tripé composto por uma roda de samba, que toca ao vivo; uma feijoada, que vai ser feita durante as duas horas da performance, e convidados que vão aparecer e desaparecer em momentos específicos, para dizer alguns textos”, antecipa Calixto.
“É uma roda de samba diferente, com um repertório que é pensado em função da preparação dessa feijoada e em função dos textos que são ditos. Acredito que para nós, brasileiros, será também algo bem especial”, afirma.
O Passages Transfestival com foco na criação de artistas brasileiros fica em cartaz na cidade de Metz até o dia 12 de setembro.