“As ideias de Elon Musk são perigosas. Ele podia ir para Marte e ficar lá, sozinho.” A frase, que até poderia ter surgido no Twitter —a rede social que o bilionário adquiriu recentemente—, é do astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, único latino-americano a vencer o prêmio Templeton, uma espécie de Nobel do diálogo entre a ciência e a espiritualidade, durante sua palestra no ciclo de encontros Fronteiras do Pensamento nesta segunda-feira, no teatro Claro, em São Paulo.
A fala despertou aplausos do público, mas veio de forma inesperada, em meio a uma apresentação do físico sobre como a humanidade deve se reinventar na era digital. A palestra foi a última desse ciclo do evento no ano, dedicada a discutir como a tecnologia e a vida interagem na contemporaneidade.
Professor no Dartmouth College, nos Estados Unidos, Gleiser carrega um título que foi dado a outras figuras do nível de madre Teresa de Calcutá, do 14º dalai-lama e do ativista sul-africano Desmond Tutu.
Partindo da perspectiva budista, o físico enxerga a ciência como uma faca de dois gumes para a humanidade. Ainda que tenha sido crucial para o desenvolvimento da humanidade, ampliando a expectativa de vida e a população global, ele acredita que o conhecimento científico também afastou a espiritualidade humana de sua conexão com a natureza, mecanizando a relação com a terra e instigando sua exploração.
Esse pensamento viria de Copérnico, segundo Gleiser, que denota como a sociedade da época rompeu com a ideia de que ela e o planeta eram o centro do universo ao descobrir que a Terra não era o centro da existência. Isso teria se prolongado com o iluminismo, que pelo colonialismo espalhou por todas as regiões a noção de civilização pela exploração da terra e a crença de um Deus inalcançável.
Por isso, Gleiser diz que o futuro da humanidade passa pela retomada da compreensão de que a existência de vida e do planeta são únicos e belos, além da crença de que o indivíduo pertence a uma rede global.
“Você precisa se maravilhar com o mistério da existência, com o fato de que nunca teremos respostas para tudo”, explica o físico. “Isso nos torna uma espécie mágica e nosso planeta também. O universo tem uma história porque nós estamos aqui para contar.”
Musk representaria uma antítese desse pensamento, no raciocínio de Gleiser. O acadêmico brincou com a figura do presidente-executivo da SpaceX enquanto explicava aos presentes o “efeito perspectiva”, uma mudança cognitiva sentida por astronautas durante viagens espaciais que envolve, segundo ele, perceber “a importância cósmica do nosso planeta”. Em vez de prolongar a exploração para o espaço, Gleiser acredita que a humanidade precisa se reconectar com a natureza.
Gleiser ainda comenta que a sociedade precisa acreditar no que define como biocentrismo —”o fato que a matéria pode existir desse jeito e que nós, seres humanos, podemos fazer a diferença nesse processo”. É o que considera como espiritualidade secular, que passa pelo entendimento da existência como mistério em si.
“Essa é a grande revolução do século 21. Nós vamos perder uma grande chance de civilização se não ensinarmos isso nas escolas”, define.
O palestrante também comentou os efeitos da Covid-19 na sociedade. A pandemia teria paralisado a máquina da industrialização e, da mesma forma que enchentes e terremotos, voltou a mostrar que o homem e a ciência não estão estão acima da natureza.
“Nossa espécie está ficando desesperada porque não encontra um caminho para a felicidade. A pandemia foi fundamental no entendimento de que fazemos parte de uma rede global e que tudo tem uma história por trás”, disse.
O ciclo Fronteiras do Pensamento continua com uma programação online e presencial em Porto Alegre até novembro.