* Cesar Calejon
Apesar de todos os crimes cometidos por Jair Bolsonaro durante a pandemia, o bolsonarismo ainda se sustenta frente à chefia do Poder Executivo. Por que razão? Os alicerces fundamentais desse fenômeno político remetem a expressões históricas e culturais do país, é o que afirma o filósofo e advogado Silvio Almeida, autor dos livros Racismo Estrutural, Sartre: Direito e Política e O Direito no Jovem Lukács: a filosofia do direito em história e consciência.
Em entrevista à coluna, ele ressaltou que o racismo estrutural brasileiro é um elemento inevitável no sentido de entender a ascensão do bolsonarismo, mas essa questão deve ser abordada de forma complexa, dialética e tendo em vista, sobretudo, a perspectiva de que o Brasil está inserido no jogo da geopolítica global.
“São tendências estruturais que o Brasil vem apresentando ao longo da nossa história e que, diante de crises, são capazes de se reorganizar com base nos contextos doméstico e internacional. É muito importante olharmos para a complexidade dessa questão nessa medida para entendermos, inclusive, a própria questão racial”, ressalta Almeida, que também preside o Instituto Luiz Gama.
Para ele, três dimensões exercem papéis fundamentais nesse cenário: a dependência econômica do Brasil com relação aos países que estão localizados no cerne do sistema capitalista global, o bloqueio à democracia nacional em momentos sociopolíticos decisivos e o racismo estrutural vigente no país desde a instituição da Primeira República (1889).
“Todas essas se entrelaçam. (…) Toda vez que o Brasil organiza um projeto de país no sentido de superar a dependência econômica, algo acontece e somos golpeados para que desapareçam essas possibilidades, o que, quase sempre, remete à segunda dimensão: o bloqueio das vias democráticas com a ascensão de propostas por meio do autoritarismo. (…) Nessa equação, a última tendência aqui citada, que é o racismo estrutural, insere-se no que tange a caracterização de um estado violento, incapaz de gerar pontos de consenso entre a sua própria população”, pondera Almeida.
De acordo com essa visão, a questão racial, no Brasil e no começo do século XXI, está embrenhada no conceito que vários teóricos e pensadores atuais classificaram como “neoliberalismo autoritário”. Sobretudo a partir de 2016, com o início do governo ilegítimo de Michel Temer, esse modelo econômico e sociopolítico ganhou muita ressonância no país.
Essa reflexão que insere a questão racial no contexto mais amplo da geopolítica doméstica e global e confere um caráter histórico-cultural ao próprio racismo é absolutamente fundamental para repensarmos soluções que sejam capazes de retomar as propriedades emancipadoras da política nacional.
Na prática, por exemplo e para efeito de compreensão, essa abordagem mais densa e complexa explica que os próprios racistas são frutos de um modelo de sociabilidade, ao invés de considerá-los, de forma predeterminada e reducionista, como vilões desprovidos de legados históricos e como seres aculturais.
Sob esse prisma, torna-se evidente que, simplesmente, aumentar a exposição e o acesso dos negros, indígenas e LGBTQIA+ a posições de destaque na forma como a atual sociedade está estruturalmente organizada não basta para promover uma mudança significativa. Explico-me: a representatividade estético-cultural é importante, sim, mas, tendo em vista a forma como o poder é efetivamente exercido na nossa sociedade, ela sozinha não tem o poder de reformular os arranjos sociais que perpetuam a exploração das classes usurpadas.
Assim, não basta (única e exclusivamente) que, novamente como mero exemplo para ilustrar a questão, as grandes emissoras de televisão aumentem os seus quadros jornalísticos ou de entretenimento no sentido de contratar apresentadores, atrizes ou atores negros. É essencial que esse aumento da proporção de negros no cast seja acompanhado por uma ocupação, na mesma medida, de pessoas negras em posições de comando das emissoras.
Bem como movimentos de cunho meramente “identitário”, que isolam a luta antirracista do contexto supramencionado, também não servem ao mesmo propósito emancipatório, apesar de conseguirem conquistar algumas posições políticas dentro do modelo que já está estabelecido.
“Nós temos a difícil missão de abrir as portas do futuro que é possível para o Brasil. (…) Tudo o que fizermos agora talvez não seja vivenciado em sua plenitude por cada um de nós que aqui estamos. O fim do governo de Jair Bolsonaro, muito provavelmente, não significará o que (o filósofo Frantz) Fanon chamou de ‘a saída da grande noite’. Existem outras armadilhas nos esperando e pessoas que participaram desse golpe tentando se reorganizar. Temos que estar atentos”, conclui Almeida.
* Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela FGV e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela USP (EACH). É escritor, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente).