No começo do debate entre os candidatos Lula e Bolsonaro, o mediador William Bonner se auto-concedeu um direito de resposta.
Correto. Ele tinha acabado de ser ridicularizado por Bolsonaro em relação ao dia em que, no Jornal Nacional, disse a Lula que ele não devia nada à justiça.
Bonner esclareceu a provocação olhando para a câmera e dizendo que tinha apenas trazido ao palco uma decisão judicial. Simples. Direto. Honesto.
Em jornalismo muito se celebra a imparcialidade, mas pouco se comenta em relação a que essa imparcialidade se refere.
Ser imparcial não é se esconder de mediar um debate e deixar que os candidatos agridam-se livremente.
Democracia não é a livre agressão.
Democracia é respeitar tensões e conflitos dentro de uma arena na qual haja equivalência de forças e poderes.
Jornalismo é ser ético em relação à verdade.
Tem momentos em que essa ética vai ser confundida com parcialidade.
Mas se a gente estabelecer que imparcialidade é ser justo com a verdade, então até mesmo essa suposta parcialidade não se sustenta.
Vejamos quatro momentos do debate que trazem essa abstração para o concreto da vida.
Bolsonaro, mais uma vez, sugeriu que na favela só tem bandido.
Assim que Bolsonaro terminasse de falar, ou antes da saída de bloco, o mediador, em nome da imparcialidade e da ética, deveria dizer:
“O candidato Jair Bolsonaro fez uma sugestão de que criminaliza de forma genérica os moradores das favelas. Em nome deles, eu abro aqui um direito de resposta. Quase 10% da população brasileira vive em favelas.”
Essa população movimenta 120 bilhões de reais por ano. Assim como nos bairros mais ricos, há nas favelas gente honesta e desonesta. Em números absolutos, podemos dizer, para sermos justos com a verdade, que nas favelas há muito mais gente trabalhadora e batalhadora do que bandidos.
Tráfico não é um crime que acontece apenas nas favelas. Em 2019, já com Jair Bolsonaro na presidência, um avião da FAB foi interceptado com 37 quilos de cocaína sendo levados à Europa.
Achar que favelas e periferias são núcleos de criminalidade e poupar os bairros mais ricos de suas responsabilidades em crimes pequenos e grandes como evasão, corrupção e sonegação é desconhecer o país que se quer governar. Nós já voltamos do intervalo.
O segundo momento.
Quando Bolsonaro fala em ideologia de gênero, outra vez Bonner precisaria ter feito o papel de mediador da verdade. Ele poderia ter dito:
“O candidato Jair Bolsonaro falou em ideologia de gênero. Em nome da imparcialidade e da ética precisamos dizer que ideologia de gênero não existe. Se fosse possível ensinar sexualidade a nossas crianças não haveria homossexuais no Brasil porque até hoje todas as instituições – escola, Igreja, sociedade, famílias – ensinam as crianças a serem heterossexuais. Vamos para um rápido intervalo e já voltamos.”
Em relação ao fim da verba para o combate à violência contra a mulher, que Bolsonaro refutou emendando que os dados de seu governo dizem que violência de gênero diminuiu, Bonner deveria ter dito.
“Candidato, seu governo de fato praticamente zerou a verba para combate à violência de gênero, assim como o orçamento para combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. E os dados dizem que o feminicídio, para ficar apenas em um indicador, aumentou nos últimos quatro anos. Feito o registro, vamos para um intervalo.”
Finalmente, sobre a Covid Bonner outra vez deveria ter feito o papel de mediador. Assim:
“Candidato, o senhor está dizendo que é o responsável pela vacinação em massa contra a Covid e que atuou de forma a preservar vidas. Precisamos ser verdadeiros aqui. O senhor atrasou a vacinação ao não comprar as vacinas quando elas foram oferecidas. Em seguida, o senhor boicotou a vacinação dizendo que não seria preciso se imunizar e que a melhor imunização era pegar a doença. O senhor encorajou as pessoas a não usarem máscara e a fazerem um tratamento preventivo que a medicina já havia dito que era inócuo e até, em alguns casos, arriscado. O senhor gastou dinheiro público comprando esses remédios ineficazes e, quando o país tinha uma média de quatro mil mortos por dia, o senhor imitou debochadamente pessoas sufocando. Vamos para um intervalo e já voltamos.”
Jornalismo é ser ético. É colocar a verdade acessível a todos. É tomar o partido das minorias oprimidas e não do patrocinador opressor.
Bonner estava ali nos representando no papel de mediador. Essas colocações seriam nossos direitos de resposta. As mentiras de Bolsonaro matam e precisam ser combatidas no ato. O papel da Globo teria que ter sido esse. Combater fakenews passa por aí.
Nesse sábado, as redes bolsonaristas estão espalhando fakenews em ritmo colossalmente maior do que o usual, como é de hábito a 24 horas da abertura das urnas e sem que haja possibilidade de o TSE julgar a tempo. Se a Globo tivesse feito sua função social no debate, essa rede teria sido bastante afetada e diminuída em sua força.
A quem interessa não confrontar as mentiras desumanas de Jair Bolsonaro? Que interesses estão sendo defendidos quando se permite que o candidato minta livremente?