Estas três palavras vieram do latim e na língua de origem são escritas de modo semelhante: census, censor, censura. Todas entraram para o português escrito no Século XV, quando a língua estava consolidada há quase meio milênio.
São palavras vivas. Falantes e escreventes precisam delas com reiterada frequência. E também de outras do mesmo étimo ou de étimos vizinhos, que lhes dão os devidos contornos, como recensear e recenseamento.
O primeiro censo de Roma foi feito ainda nos tempos monárquicos, no Século VI a. C. Segundo Tito Lívio, foram registrados cerca de 80.000 homens vivendo na cidade que se tornaria eterna, espalhados também pelas periferias. Na época, como de costume, não foram considerados os escravos, as mulheres e as crianças. A democracia em Atenas também não os levava em conta.
Outros censos nem sempre puderam ser comprovados com tal precisão. O Evangelho de Lucas nos conta que Jesus nasceu em Belém e não em Nazaré, onde viviam seus pais, por causa de um recenseamento ordenado pelo imperador César Augusto, que especificava ser obrigatório nas províncias fazer isso na cidade natal dos pais.
Lucas era médico, escrevia bem e registrou assim na versão em latim: “In diebus illis, exiit edictum a Caesare Augusto ut describeretur universus orbis”. (Naqueles dias, saiu um mandado de César Augusto para descrever o mundo inteiro). O mundo inteiro do império romano, como subentendido. O imaginoso narrador dá mais detalhes: quem mandava na região era Quirino, governador da Síria; Maria estava grávida; ela e o marido José foram da Galileia a Belém para cumprir a ordem imperial.
Não é difícil imaginar como surgiram os vínculos entre censo, censura e censor, vindos da paixão de conhecer a vida alheia para protegê-la ou para dominar o próximo. Na esteira de censos e recenseamentos vêm os modos de controle: político, social e naturalmente também cultural, sem dispensar a sexualidade e as artes.
Essas breves notas ajudam a compreender a censura, mas não a evitá-la. Mas ajudam a combatê-la, pois o dever dos intelectuais é esclarecer, organizar as ideias e auxiliar o distinto público a compreender se as autoridades estão agindo dentro da lei.
Por isso, quem está empenhado em proibir os discordantes incorre numa contradição inexplicável, vez que nega a sua ferramenta de trabalho, que é justamente a palavra, que tem seus ritos e toda hora está em julgamento. O primeiro juízo é dado pelos ouvidos e pelos olhos do próximo. O preceito bíblico tem raízes multisseculares, extraídos de um saber de experiências feito: bem-aventurados aqueles que têm ouvidos para ouvir e olhos para ver.
Sabemos como a censura começa, não sabemos como termina. É quase sempre nobre o argumento invocado para censurar, proibir, assustar etc. Ações nauseabundas são feitas em nome de proteger o cidadão.
Por que então não proibiram o sarampo, a meningite, a febre amarela? A proteção é a vacina. A vacina contra a censura é a liberdade.
Nos anos pós-64, livros proibidos eram muito procurados. Atualmente jazem abandonados e esquecidos em sebos. Centenas deles teriam sido olvidados antes, se não tivessem sido proibidos.
A censura não é apenas um ato a ser reprovado por todos. É um ato inútil para quem a pratica. É o verso da moeda de recomendar aos leitores um livro indesejado por eles. Nenhum dos dois atos atingirá seu objetivo, não tem perigo de dar certo. A censura tem sempre final infeliz para quem a praticou. E a mácula pode ser lembrada para sempre.
Desta vez a censura é pior, sobretudo pelos seguintes motivos: por ser inconstitucional; por ser prévia; por ser imediata; por ser feita por ministros do STF, última instância de recurso para defender a liberdade.
P. S. Este professor e escritor torna públicas sua solidariedade a quem foi, é ou será censurado, e sua reprovação a quem os censurou, censura ou vai censurar.
* mais detalhes em outros verbetes do livro De onde vêm as palavras (18ª edição, revista e ampliada). São Paulo, Almedina, 2021.