Quando ainda criança, Maria Cristina de Abreu costumava brincar com os irmãos em uma área rural no município de Maringá (PR). Ela era saudável e ativa até os quase dois primeiros anos de vida. Tomou a vacina Sabin contra a poliomielite em junho de 1970. Porém, era tarde demais. No dia seguinte seus problemas de saúde começaram.
“Com um ano e oito meses eu não conseguia levantar da cama”, conta a paranaense, hoje com 53 anos. “Quando tomei a vacina já estava com sintomas da poliomielite. Meu pai me levou para o hospital e lá fui diagnosticada com suspeita de poliomielite.”
Os problemas de saúde de Maria Cristina pioraram com o tempo. As dores nas articulações ficaram mais intensas e os movimentos do corpo se tornaram mais lentos. Além disso, vômitos constantes e fraqueza nos braços e pernas começaram a fazer parte de sua rotina.
O quadro obrigou ela e a família a se mudarem para São Paulo, onde seria acompanhado com maior infraestrutura na AACD, organização sem fins lucrativos que desde 1950 oferece assistência médico-terapêutica em Ortopedia e Reabilitação. Segundo a sobrevivente, foram necessárias 25 cirurgias para levar a vida que vive hoje.
Enquanto usa a cadeira de rodas elétrica para se movimentar, a paranaense revela sua preocupação com a atual baixa cobertura vacinal contra a poliomielite no Brasil. “Minha família ficou muito aflita na época. A minha maior tristeza é saber que os pais não têm noção do que essa doença pode causar”, lamenta.
Pólio tem alto risco de reintrodução
Segundo a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), agência ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil está entre os quatro países da América Latina com risco de reintrodução da pólio. Por aqui, a doença causadora da paralisia infantil foi declarada oficialmente erradicada em 1989.
A cobertura vacinal contra a doença ficava acima de 95% das crianças protegidas. Mas os índices de imunização começaram a apresentar uma queda mais significativa entre 2016 e 2019, quando a taxa de imunização ficou na casa dos 80%.
Já em 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19, a cobertura vacinal contra a pólio caiu para 76%. No ano passado, a queda foi ainda maior, com cerca de 70% do público-alvo vacinado. A cobertura atual está em 69%, um dos piores níveis da série histórica.
“Ver o Brasil nessa situação de vulnerabilidade, com riscos da doença voltar, dá um desespero não só em mim, mas em todos os que já tiveram poliomielite”, lamenta Maria Cristina. “É uma doença muito séria e cruel.”
Campanha de vacinação
A queda da cobertura vacinal contra a poliomielite no Brasil preocupa especialistas ao redor do mundo, que alertam para o risco de reintrodução da doença no país. Somente no Estado de São Paulo, oito em dez municípios estão na lista de alto risco da Opas para o retorno da enfermidade.
Os EUA confirmaram o primeiro caso em julho deste ano. Em Israel, foram registrados sete diagnósticos de pólio apenas em março. Já em Londres, na Inglaterra, traços do poliovírus foram encontrados no esgoto, e uma campanha de vacinação foi lançada.
Para melhorar a cobertura vacinal infantil, o Ministério da Saúde lançou uma campanha nacional de vacinação, com a meta de imunizar 14 milhões de crianças brasileiras. No entanto, a propaganda que trazia o pronunciamento do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para chamar os pais a vacinarem seus filhos entrou na mira do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em 23 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes alegou que o governo não demonstrou a “gravidade ou a urgência que justifiquem a aparição da figura do ministro da Saúde em cadeia nacional” em período eleitoral. Já no dia 7 de outubro, o pedido de autorização para transmitir a peça foi negado novamente. Pela lei, a autorização prévia do TSE é necessária durante esse período.
“Nós fizemos a nossa parte, mas o presidente do TSE entendeu que feria preceitos constitucionais de impessoalidade”, afirmou Marcelo Queiroga. “Os poderes são autônomos, devem ser harmônicos e todos nós temos de nos curvar à legislação.”
Ainda longe de atingir a meta, pelo menos 12 Estados mais o Distrito Federal prorrogaram até o fim de outubro a campanha contra a poliomielite. A meta era vacinar 95% das crianças de até 5 anos, mas o índice chegou a 54% apenas na campanha lançada recentemente.
Erradicação da doença
No Brasil, a primeira descrição de um surto de poliomielite foi feita em 1911. A vacina desenvolvida pelo médico virologista norte-americano Jonas Salk foi a primeira a chegar no país, 40 anos depois da epidemia se alastrar. A conquista foi promovida pelas secretarias estaduais e municipais de Saúde no Rio de Janeiro e São Paulo.
Apesar da vacina Salk começar a ser aplicada a partir de 1955, nem todas as crianças chegaram a receber o imunizante. “Foi um desespero total na minha família diante do diagnóstico”, conta Tânia Regina, diagnosticada com poliomielite em outubro de 1972.
Segundo a empresária, quando sua família a levou ao posto para receber a vacina, a febre da pólio já se apresentava como um sintoma. “Fui logo encaminhada para o hospital porque me encontrava muito mole e sem firmeza no corpo”, recorda Tânia, hoje com 50 anos.
Coluna, quadril, perna e pé do lado direito do corpo da sobrevivente foram prejudicados pela doença. Depois de passar por 16 cirurgias ortopédicas, Tânia Regina precisa andar com o auxílio da muleta. Ela faz um apelo:
“Essa queda vacinal da qual o Brasil está passando é desesperadora, porque sou uma vítima”, afirma. “Na minha época as vacinas chegavam sempre atrasadas. Hoje, os imunizantes estão lá, esperando pelos pais levarem seus filhos, mas isso não está acontecendo.”