É enganoso um post feito na plataforma Substack afirmando que uma metanálise norte-americana revisada por pares e publicada em um periódico científico coloca a hidroxicloroquina no mais alto nível de evidência científica como substância para prevenção da Covid-19.
O artigo, como verificado pelo Projeto Comprova, é de baixa relevância científica, segundo explicaram dois especialistas ouvidos pela reportagem: o médico infectologista Leonardo Weissmann, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), e o virologista e coordenador do curso de biomedicina do IBMR (Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação), Raphael Rangel.
A pesquisa também não comprova a eficácia do medicamento no tratamento precoce para a Covid-19, mas “sugere que a PrEP (profilaxia pré-exposição) semanal é segura e eficaz na prevenção da doença em um grupo de profissionais de saúde de alto risco”. A profilaxia pré-exposição é o procedimento de saúde usado antes da exposição a um patógeno capaz de provocar uma doença.
O artigo analisou onze pesquisas de caráter observacional com profissionais de saúde da Índia e o método de seleção dos estudos foi descrito de forma vaga. Conforme as diretrizes metodológicas para estudos observacionais do Ministério da Saúde, os principais problemas das metanálises deste tipo de pesquisa são decorrentes das limitações do delineamento dos estudos primários (coortes e caso-controles). Basicamente, a presença de variáveis de confusão, ausentes ou controladas em ensaios clínicos randomizados, pode gerar medidas de associação enviesadas nos estudos observacionais.
Não foram levantados dados de estudo clínico randomizado controlado, conhecido pela sigla em inglês RCT. Neste tipo de estudo, os pacientes são separados em dois grupos de forma aleatória. Um deles recebe o tratamento a ser testado, enquanto o outro recebe o placebo. Nenhum paciente sabe qual recebeu para evitar influência nos resultados. Esse estudo é considerado o padrão-ouro para determinação de eficácia de um medicamento ou vacinas.
Procurados, os autores do estudo não responderam à reportagem. O autor da postagem, Filipe Rafaeli. defendeu a pesquisa e afirmou já ter sido procurado anteriormente pelo Estadão Verifica. Conforme a publicação, ele ameaçou processar o jornalista.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações.
Como verificamos?
A partir da postagem no Substack, o Comprova verificou o conteúdo do texto compartilhado e chegou ao estudo, que foi conduzido por Raphael B. Stricker e Melissa C. Fesler, dois médicos de um grupo privado de São Francisco, nos Estados Unidos, chamado Union Square Medical Associates.
Acessamos checagens e estudos anteriormente publicados sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento contra a Covid-19. Também conversamos com dois especialistas sobre a análise publicada e consultamos as recomendações das principais agências reguladoras do mundo e da OMS (Organização Mundial de Saúde).
Por fim, tentamos conversar com os autores do estudo e falamos com Filipe Rafaeli, responsável pela publicação no Substack.
Verificação
Estudo não garante a eficácia da cloroquina
A pesquisa “Profilaxia pré-exposição de hidroxicloroquina para Covid-19 em profissionais de saúde da Índia: uma metanálise” foi publicada no Journal of Infection and Public Health, que possui Fator de Impacto 3.718, um método bibliométrico para avaliar a importância de periódicos científicos em suas respectivas áreas. A partir disso, está classificado na 60ª posição entre 203 revistas especializadas em saúde pública, ambiental e ocupacional.
O estudo foi conduzido por Raphael B. Stricker e Melissa C. Fesler, revisado por pares e indexado em outras plataformas médicas.
Foram analisadas onze pesquisas de caráter observacional com profissionais de saúde da Índia e o método de seleção dos estudos foi descrito de forma vaga em apenas um parágrafo. Os autores afirmam terem utilizado mecanismos de busca da internet para identificar os estudos de caso-controle que envolveram 7.616 profissionais de saúde de alto risco testados para infecção por Sars-CoV-2 após profilaxia pré-exposição com hidroxicloroquina semanal ou após nenhum tratamento.
Não foram levantados dados de estudo clínico randomizado controlado considerado bastante eficaz para testar se um medicamento funciona ou não, conforme reportagem da Superinteressante.
No texto publicado, Filipe Rafaeli afirma que a metanálise colocou a hidroxicloroquina para prevenção da Covid-19 no mais alto nível de evidência científica. A afirmação, contudo, contradiz a própria pesquisa, que não atesta a eficácia da hidroxicloroquina enquanto tratamento precoce, mas “sugere que a PrEP HCQ semanal é segura e eficaz na prevenção de Covid-19 em um grupo de profissionais de saúde de alto risco”.
Os autores reconhecem, por exemplo, que os estudos de coorte selecionados têm limitações em termos de desenho retrospectivo, ou seja, a análise antes da exposição, quando se olha para o passado dos pacientes para a identificação de quem sofreu a exposição, e de homogeneidade. Acrescentam serem necessárias as conduções de ensaios clínicos randomizados para avaliar a utilização da substância como método de prevenção para Covid-19.
A metanálise, que é um método estatístico para agregar os resultados de dois ou mais estudos independentes sobre uma mesma questão de pesquisa, combinando os resultados em uma medida sumária, também destaca ser importante reconhecer que os estudos utilizados excluíram a PEP (profilaxia pós-exposição) com hidroxicloroquina ou o tratamento de indivíduos que foram infectados com Sars-CoV-2, ou seja, a administração de medicamentos com o intuito de tratar a doença já adquirida.
Falhas
A reportagem pediu a dois especialistas que fizessem a análise do estudo e ambos apontaram problemas no artigo. O infectologista Leonardo Weissmann, da SBI, destaca que os autores do artigo não se esqueceram de falar em “preconceito” contra a hidroxicloroquina, mas deixaram de lado regras básicas de metodologia para a realização de uma revisão sistemática e metanálise.
Os autores defendem, ao longo do texto, que a hidroxicloroquina “foi atacada e rejeitada com base em estudos falhos e controvérsias políticas que obscureceram o valor deste tratamento como profilaxia”.
Segundo o especialista, não há um objetivo definido de estudo, não foi citada a estratégia de busca dos artigos, com critérios de inclusão e exclusão, não se sabe se os autores avaliaram a qualidade dos estudos utilizados, pois nada foi descrito a respeito, e não existe um padrão definido para a extração de dados. “Como afirmar que não há vieses? Impossível!”, declara.
Segundo Weissmann , diante disso, não há como avaliar os achados da metanálise com qualquer credibilidade, nem aplicá-los na prática diária. “Ainda usam ‘vacina’ como palavra-chave do estudo, sendo que o texto não tem nenhuma relação com imunização”, comentou.
O virologista Raphael Rangel tem opinião semelhante. “O artigo se trata de uma metanálise com estudos observacionais, então os dados podem estar muito enviesados. Além disso, não é um estudo duplo-cego randomizado, portanto não há como medir de fato se houve uma eficiência de medicamento ou não. Outro fator é que esses resultados foram publicados em revistas de pouquíssima expressão”, disse, referindo-se às análises observacionais.
No estudo duplo-cego randomizado um grupo de interesse faz uso da terapia e é acompanhado por um grupo-controle, que não faz o uso da terapia. Já o estudo observacional de coorte se propõe a observar, em uma população previamente definida, qual será a incidência de determinada doença ou fenômeno relacionado à saúde ou doença.
Rangel destacou haver estudos aprofundados e publicados em revistas científicas de renome, como The Lancet e New England Journal of Medicine, demonstrando que a hidroxicloroquina não tem nenhuma eficácia, nem voltada à pré-exposição e nem à pós-exposição. “Precisamos superar isso, já passou. Temos vacina, precisamos vacinar e é só com a vacina e com a utilização de máscaras mais eficazes que vamos sair dessa pandemia”, defende.
Polêmica científica
Conforme explicou o Estadão Verifica, que fez a checagem do mesmo conteúdo, um dos principais autores do estudo citado pelo blog, Raphael B. Stricker, se envolveu em uma polêmica em 1993, quando foi acusado de “má conduta científica” ao longo de outra pesquisa.
À época, uma investigação da Universidade da Califórnia, em San Francisco, apontou que o cientista teria falsificado dados enquanto pesquisava sobre Aids, suprimindo seletivamente aqueles que não sustentavam sua hipótese, e relatando dados consistentemente positivos, enquanto apenas um em quatro experimentos produziu resultados positivos. Na ocasião, a pesquisa afirmou que anticorpos para Aids eram encontrados apenas em homens homossexuais.
Stricker afirmou ao Estadão que as “alegações de 30 anos atrás são espúrias”. Ele não respondeu ao contato do Comprova.
Em relação a Melissa C. Fesler, não foram localizados artigos sobre doenças respiratórias até a pandemia, quando passou a fazê-los junto a Stricker, segundo dados do Research Gate.
Alteração no texto
Na aba em que se apresenta no site, Filipe Rafaeli afirma ser profissional de comunicação, cineasta e piloto de acrobacia. O primeiro conteúdo foi publicado em dezembro de 2020 e defendia que a hidroxicloroquina era cientificamente comprovada. A partir de então, todas as postagens são referentes ao tratamento precoce contra a Covid-19, tratando, principalmente, do medicamento.
Quando a reportagem iniciou esta verificação, o texto publicado por ele afirmava que “um recente estudo científico revisado por pares e publicado no prestigiado periódico científico Journal of Infection and Public Health, de alto impacto, confirmou cientificamente a eficácia da hidroxicloroquina para prevenção da Covid-19.”
Posteriormente, o texto foi alterado para: “Um recente estudo científico revisado por pares e publicado no prestigiado periódico científico Journal of Infection and Public Health, de alto impacto, colocou a hidroxicloroquina para prevenção da Covid-19 no mais alto nível de evidência científica.”
Três dias antes da publicação deste texto, o autor comentou, na plataforma Substack, que a sua sugestão para as pessoas é que “todos tenham em mãos o telefone de algum médico que faça tratamento de Covid-19. E, na primeira suspeita, ligar”, disse.
Em fevereiro deste ano, a agência Aos Fatos identificou como falsa postagem nas redes sociais que reproduziu um texto dele.
Ao ser procurado, ele respondeu: “Esse (conteúdo) o Estadão já veio atrás (…). O Estadão ignorou estudos e pegou a opinião de um ‘especialista’ para rebater”. Conforme publicado pelo Estadão Verifica, Filipe ameaçou processar o autor da checagem “caso fosse publicado algo que ‘pichasse’ seu nome ou ‘censurasse’ a postagem”.
Sobre o artigo, afirmou que “metanálise é metanálise”, complementando que o estudo em questão não foi feito em padrão Prisma, um conjunto mínimo de itens com base em evidências para relatar em revisões sistemáticas e metanálises.
Questionado pelo Comprova sobre a eficácia do artigo compartilhado, Filipe disse: “Então, partindo do princípio de ‘carimbo’ de burocrata de alguma entidade, sendo que a Europa ou os Estados Unidos não aceitam a Coronavac, você vai concluir que ela [a pesquisa] ‘não é comprovada cientificamente?”
Conforme explicou essa verificação do Comprova, um artigo encaminhado por cientistas do Butantan, em abril de 2021, para a revista científica The Lancet mostrou que a eficácia da Coronavac para casos sintomáticos atingiu 50,7% com 14 dias de intervalo entre as duas doses.
Outro estudo feito pelo Instituto Butantan na cidade de Serrana, no interior de São Paulo, vacinou cerca de 75% da população adulta e constatou queda de 80% nos casos sintomáticos e de 86% nas internações, além da redução de mortes em 95%. Uma pesquisa, feita no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, apontou queda de 80% nos casos de Covid-19 entre os 22 mil funcionários vacinados com a Coronavac.
Trecho do conteúdo publicado no Substack foi printado e compartilhado no perfil “Médicos pela Vida” no Instagram, que afirma defender a relação médico-paciente, assistência primária e o “tratamento precoce”. Na página, contudo, a postagem foi definida como parcialmente falsa pela plataforma.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal, eleições e pandemia, que viralizam nas redes, como é o caso da postagem aqui verificada, que teve mais de 16 mil interações no Facebook, 1.280 no Twitter e 1.145 no Instagram, conforme a ferramenta CrowdTangle. Esse conteúdo chegou até o Comprova por meio de um pedido realizado por Whatsapp por um leitor, que nos contactou através do número (11) 97045-4984. Os compartilhamentos ocorreram principalmente a partir de páginas bolsonaristas.
A disseminação de informações falsas ou enganosas sobre supostos tratamentos profiláticos para a Covid-19 pode colocar a saúde das pessoas em risco, tanto pela exposição às substâncias não recomendadas para a doença, quanto pelo contato com o vírus ao se imaginarem protegidas.
Até o momento, as únicas formas comprovadas de se evitar a contaminação são o uso de máscaras, o distanciamento social e a higienização constante das mãos, assim como a vacinação.
Esse mesmo conteúdo foi analisado pelo Estadão Verifica e outros envolvendo a hidroxicloroquina já foram alvos de publicações do Comprova, como a que demonstrou que um médico engana ao afirmar que hidroxicloroquina é eficaz contra a Covid e a que apontou que estudo com hidroxicloroquina não comprova eficácia do tratamento precoce.
Enganoso, para o Comprova, é conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 31 de agosto de 2021.