Saúde ‘perdoa’ municípios que descumpriram metas de controle de hipertensão e diabetes

A pressão arterial deveria ter sido aferida em metade dos pacientes a cada seis meses, porém apenas 12% das cidades cumpriram a meta

Cláudia Colucci
São Paulo, SP

Sem cumprir metas de controle de diabetes e hipertensão, quase 5.000 municípios brasileiros conseguiram, às vésperas do segundo turno eleitoral, prorrogar por quatro meses o prazo dessa cobrança pelo Ministério das Saúde e, com isso, evitar um desconto de R$ 117 milhões de recursos destinados à atenção primária.

A meta no segundo quadrimestre deste ano, finalizado no fim de agosto, era que 50% dos diabéticos tivessem feito exame de hemoglobina glicada ao menos uma vez por ano, mas só em 11% dos municípios isso ocorreu. A pressão arterial deveria ter sido aferida em metade dos pacientes a cada seis meses, porém apenas 12% das cidades cumpriram a meta.

Na cobertura vacinal contra a poliomielite e da pentavalente (contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e bactéria haemophilus influenza tipo B), somente 9% cumpriram o objetivo de vacinar 95% das crianças. Também só 9% cumpriram a meta de cobertura do exame citopatológico (papanicolau), para a prevenção do câncer do colo de útero, que seria atingir 40% das mulheres entre 25 e 64 anos.

A decisão da prorrogar o cumprimento das metas foi anunciada na noite desta quinta (20), em reunião da CIT (Comissão Intergestores Tripartite), que reúne representantes do Ministério da Saúde, do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde).

As metas estão previstas no Previne Brasil, programa do Ministério da Saúde criado em 2019 que mudou a lógica de financiamento da atenção primária à saúde. Uma parte dos repasses federais aos municípios passou a ser calculada de acordo com o desempenho em indicadores e o número de usuários cadastrados e acompanhados na atenção primária do SUS.

Segundo Mauro Junqueira, presidente de Conasems, o pedido de prorrogação foi feito pelos secretários municipais e atendido pelo Ministério da Saúde. “Isso dá a possibilidade de não haver o desconto de R$ 117 milhões aos municípios. Em função da pandemia e de outros fatores, não conseguimos avançar [no cumprimento das metas]”, diz ele.


CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Para Érico Vasconcellos, fundador da UniverSaúde, startup que capacita gestores do SUS, a medida abre precedente grave por “mudar as regras do jogo no meio do jogo”. “Há clara motivação política. Se o argumento é o prejuízo causado pelos resultados ruins dos indicadores, por que o Ministério da Saúde não considerou essa revisão antes?”

Raphael Câmara, secretário da atenção primária do ministério, diz que o pedido de prorrogação partiu dos dirigentes do Conasems, e não da pasta. “Como temos um carinho muito especial pelos municípios do Brasil, a gente deferiu. Dando mais quatro meses, a gente espera que os municípios possam se adequar.”

Para ele, o fato de isso ter ocorrido a dez dias das eleições é coincidência. “A gente liberou em 10 de outubro os resultados [do desempenho dos municípios no segundo quadrimestre, finalizado em agosto]. A mídia sempre quer encontrar alguma coisa [errada] por trás, mas não tem.”

No primeiro quadrimestre do ano, os municípios já tinham deixado de receber R$ 143 milhões por não atingirem metas estabelecidas para o acompanhamento de gestantes no pré-natal. A partir de outubro, começariam a receber os recursos referentes ao desempenho em sete indicadores, incluindo os de diabetes e hipertensão.


CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Hisham Hamida, diretor financeiro do Conasems, explica que, embora os indicadores de desempenho sejam “teoricamente simples” de serem atingidos, os municípios se depararam com muitos problemas, como instabilidade nos sistemas de informação do Ministério da Saúde.

“Às vezes, o dado não chega e, quando chega, é com erro. Há uma estimativa do Datasus de que cerca de 30 milhões de doses de vacinas foram aplicadas pelos municípios mas não estão contabilizadas ainda [pelo ministério]. Estão no caminho. São ajustes que precisam ser feitos.”

Outro problema, segundo ele, é que o Ministério da Saúde tem usado números superestimados para calcular o número de doentes crônicos em cada município. Esses dados estão baseados majoritariamente na Pesquisa Nacional de Saúde.

“Nós temos regiões em que o denominador do ministério diz que eu tenho que aferir pressão de uma determinada população de hipertensos e eu tenho bem menos. Mesmo em municípios menores, que têm um controle melhor, eles não conseguem atingir [a meta] porque a população [de crônicos] está superestimada”, explica.


CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Hamida diz também que há municípios com alta taxa de moradores que possuem planos de saúde, que podem estar com coberturas melhores de acompanhamento de crônicos e de exames para prevenir o câncer de colo de útero, por exemplo, mas os dados privados não conversam com os públicos.

Ele lembra ainda que muitos municípios enfrentam dificuldades estruturais, com equipes de saúde de família desfalcadas por falta de médicos. “Se São Paulo tem dificuldade de fixar profissional médico, imagine o restante do país, o interior.”

Na opinião de Érico Vasconcellos, o Ministério da Saúde está, desde o início do Previne Brasil, transferindo para os gestores municipais a responsabilidade pela perda dos incentivos financeiros.


CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

“Ninguém está nem aí para os problemas que as equipes estão enfrentando, principalmente do ponto de vista da gestão da informação por meio dos sistemas”, diz ele.


CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Para Isabel Opice, cofundadora e diretora de operações da Impulso Gov, organização sem fins lucrativos que atua fomentando uso de dados e tecnologia no SUS e que criou uma plataforma voltada aos gestores para o acompanhamento das informações do Previne Brasil, os indicadores vêm apresentando melhoras, mas ainda estão longe da meta.

Por exemplo, o resultado médio para a hipertensão, cuja meta é ter 50% da população-alvo com consulta e pressão arterial aferida no semestre, foi de 30% no último quadrimestre. Para diabetes, com a mesma meta, 24% dos pacientes passaram por consulta e tiveram a hemoglobina glicada dosada.

Segundo ela, em muitos municípios, as equipes de saúde não têm conhecimento sobre a real população com hipertensão e diabetes e, por isso, não conseguem realizar o monitoramento adequado. “É importante que o adiamento seja acompanhado de medidas de apoio do ministério aos municípios, como comunicação das regras do programa, registro de dados e transparência dos cálculos de desempenho, que permanecem gerando dúvidas entre gestores e profissionais da atenção primária.”

Raphael Câmara afirma que pode haver instabilidade e outros problemas nos sistema de informação do ministério, que eles já estão sendo resolvidos, mas “de forma nenhuma” isso prejudicou o desempenho dos municípios.

Para ele, o número de hipertensos e diabéticos não está superestimado, como relata o Conasems. “Há sim um subdimensionamento dos municípios. Acaba-se aferindo a pressão só de quem vai ao posto. E mesmo assim quem vai com a queixa de hipertensão e diabetes. Não há busca ativa.”

Em relação aos “municípios ricos”, com alta taxa de moradores com planos de saúde e que podem fazer acompanhamento com médicos particulares, Câmara diz que pode haver prejuízo nos resultados do Previne Brasil porque essa assistência não é computada. “Por enquanto a gente não tem como obrigar esses médicos a notificarem.”

Câmara afirma que o ministério fez oficinas para capacitar municípios de todas as regiões do país sobre o Previne Brasil, mas que também é papel do estados ajudá-los no cumprimento das metas.

Deixe um comentário