Ainda restrita à Argentina, a polêmica causada por “Vosso Reino” mostra que sempre há gente disposta a vestir a carapuça diante da ficção, mesmo a mais delirante (contém ironia).
Mal a série começa, um candidato à Presidência, um empresário que representa o credo liberal, leva uma facada durante um ato político e esse atentado muda a história da campanha eleitoral. O candidato a vice, na mesma chapa, é um pastor neopentecostal popular, que defende uma plataforma de valores retrógrados.
Subornando um aqui, matando outro acolá, um assessor político movimenta-se nas sombras, aparentemente orientado por americanos, para assegurar que os planos de eleger uma chapa afinada com os interesses do empresariado sigam nos trilhos. A associação com a direita religiosa é vista por ele como um mal menor e, aparentemente, sob controle.
Ao longo dos oito capítulos da primeira temporada, a série traça um retrato da denominação religiosa que se envolve na eleição presidencial. A carga é pesada e inclui dólares abençoados, exorcismos encenados e abuso sexual.
Elena —papel de Mercedes Morán— teme que a incursão do marido Emilio —Diego Peretti— prejudique a igreja que criaram —“Querido, a única garantia de crescimento para a nossa igreja são os deputados e senadores que aprovam as leis que gostamos e boicotam as que desaprovamos. Não precisamos de ninguém na presidência”, ensina.
Lançada no início de agosto, a série é a primeira incursão do cineasta Marcelo Piñeyro —de “Plata Quemada” e “Kamchatka”— neste formato de ficção. Ele é também coautor do roteiro com Claudia Piñeiro.
Uma entidade que congrega igrejas evangélicas argentinas viu em “Vosso Reino” uma tentativa de “criar no imaginário popular a percepção” de que seus pastores “só têm ambições de poder ou de dinheiro”, com o objetivo de “segregar e designar como perigosos e fundamentalistas” seus fiéis.
A série gerou pedidos de boicote à Netflix. Diante da reação, a dupla de autores da trama, Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro, se manteve firme.
“O que fazemos é denunciar igrejas evangélicas que manipulam a sociedade para impor políticas conservadoras e tirar os direitos dos cidadãos”, disse Marcelo Piñeyro ao diário Página 12. Mas ele lembrou que, apesar de inspirada em dados da realidade, se trata de uma ficção, com uma igreja e um candidato de direita inventados.
Os roteiristas tinham Trump e outros luminares do conservadorismo contemporâneo em mente, mas garantem que já haviam escrito a cena da facada antes do atentado sofrido por Bolsonaro. E já tinham imaginado a nomeação de uma pastora para o Ministério da Mulher antes de Damares Alves ser escolhida para um cargo semelhante no Brasil.
Assistindo ao que se passava no país vizinho enquanto terminavam de escrever a série, Claudia Piñeiro disse: “Pensamos que tínhamos que nos apressar com o roteiro porque a realidade estava batendo em nossos calcanhares”.
Nesta sexta-feira (27), a Netflix anunciou a encomenda da segunda temporada. O final aberto da primeira era um indicador óbvio de que a história não terminou, mas o serviço de streaming poderia, como já ocorreu em outras situações, ter se dobrado às pressões, o que não ocorreu, felizmente.
Ainda que muitas vezes pegue a estrada do mirabolante e solucione alguns conflitos de forma primária, o roteiro de “Vosso Reino” tem a coragem de imaginar o pior cenário possível, o pesadelo de quem teme um regime de inspiração teocrática. É surpreendente que nada parecido tenha sido produzido nos últimos anos no Brasil.
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