Diálogos do Sul: EXCLUSIVO: Um dia em meio à guerra na Ucrânia: bombas, destruição e silêncio

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“A guerra é um grande silêncio, rompido, de vez em quando, pelo barulho de bombas. (…) Eles bombardeiam escolas, igrejas, pontes e hidrelétricas. É bizarro, mas tem muita criança e mulheres idosas no meio disso tudo”.

Enquanto visitava locais destruídos pela guerra nos arredores de Kherson, começou um barulho, “como se fosse um ferro, uma placa de metal se movimentando, mas com um tom abafado. Então ouvimos o som das bombas. Rapidamente, o militar responsável por nossa segurança ordenou: “corre!”.

A história é narrada, em meio a emoção, indignação e minutos de silêncio, por Igor Kemmer[1], uma das pessoas que acompanhou o referendo, realizado em setembro, que consultou os cidadãos das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e das regiões então ucranianas de Kherson e Zaporíjia sobre o desejo de se incorporarem, ou não, à Federação Russa.

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A jornada de quatro dias do observador teve início na região da Crimeia, —que passou a fazer parte da Rússia em 2014, também após um referendo consultivo — e tinha como destino a cidade de Kherson, onde bombardeios ucranianos têm sido intensos. Foram oito horas de viagem — de van e balsa — para chegar até o local.

“Morreram duas pessoas lá [em um bombardeio em Kherson], então a gente já sabia que era uma das regiões mais tensas e foi justamente para lá que fomos levados para ver a votação no referendo”, conta Kemmer.

Já nos primeiros dias da presença internacional no país, a imprensa russa noticiou que o Play Hotel de Ribas, no centro de Kherson, havia sido atingido por um míssil. Autoridades da região classificaram o ato como terrorismo contra alvos civis.

Play Hotel de Ribas, no centro de Kherson (Foto: Reprodução)

O ex-deputado ucraniano Oleksiy Zhuravko e mais uma pessoa morreram no ataque. Jornalistas da emissora Russia Today (RT) também estavam hospedados no local, mas apenas o cinegrafista — que ficou sob escombros, mas foi socorrido — se feriu. 

Os ataques ucranianos a infraestruturas e alvos civis em Kherson fizeram com que o adiamento do referendo na região fosse cogitado. O que finalmente não ocorreu.

Breves atualizações

Os observadores voltaram para seus países logo após o fim da votação, em 27 de setembro. Desde então, a situação mudou muito rapidamente. Já em 3 de outubro, a Duma, Parlamento russo, aprovou, unanimemente, a incorporação das quatro regiões à federação russa.

Em 8 de outubro, a ponte que liga a península da Crimeia ao continente, um dos grandes orgulhos do povo russo — construção, inaugurada em 2018 e chamada de “a obra do século” —, foi parcialmente destruída quando um caminhão com combustíveis explodiu sobre ela. 

Imagem de satélite mostra a ponte após a explosão (Foto: @ArtisanalAPT) Como resultado, o trânsito na ponte foi totalmente suspenso, o que afetou o abastecimento de alimentos, combustíveis e energia elétrica para a Crimeia. Quatro pessoas que estavam no local morreram.

Kiev já vinha repetidamente anunciado sua intenção de destruir totalmente a construção, considerada por eles um alvo militar. A locomoção hoje está parcialmente retomada, mas há enormes filas de caminhão para entrar ou sair da região.

Reparos iniciais sendo realizados na estrutura (Foto: @Archer83Able)

De acordo com o site Ukrainska Pravda, a ação foi levada a cabo pelo serviço de inteligência da Ucrânia. A porta-voz do ministério de Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, acusou Kiev de terrorismo contra civis, ambas as posições foram reforçadas por Putin.

A ação escalou ainda mais a guerra. Em 10 de outubro, dezenas de mísseis russos caíram sobre Kiev, em regiões civis, provocando cortes de eletricidade e água em várias cidades ucranianas.

De acordo com o governo Zelensk, 11 importantes instalações de infraestrutura foram danificadas em todo o país e 14 pessoas morreram. Na segunda (17), houve um novo ataque, com drones kamikazes, a Kiev e outras cidades, deixando centenas de delas sem energia e ao menos três pessoas morreram.

“No caso de contínuos atos terroristas ucranianos em território russo, nossa resposta será dura e em termos de sua escala corresponderá ao nível de ameaças”, disse Putin durante reunião do Conselho de Segurança na segunda (10).

Alvos preferenciais

Os ataques a infraestruturas essenciais não são de hoje. Kemmer conta que para chegar a Kherson é preciso atravessar uma ponte grande, chamada Antonovskiy, sobre o rio Dnieper

Ponte sobre o rio Dnieper (Foto: Wikicommons)

Por ser estratégica para a logística, o abastecimento da região, a infraestrutura está sendo bombardeada há muito tempo. A estrutura chegou a ser recuperada pela Rússia, mas seguiu sendo bombardeada até que no começo de setembro o tráfego de carros foi suspenso. 

De acordo com Kemmer, apesar da destruição, ainda havia pessoas que a utilizavam para se deslocar a pé: “Era muito perigosa essa ponte, mas tinha senhoras, crianças e muita gente passando por ela”. 

A delegação internacional, da qual Kemmer era parte, só pôde se deslocar na região porque foi custodiada por soldados. A única forma para eles de atravessar o rio Dnieper era via balsa e com um tanque antimíssil na margem para protegê-los. 

O momento era de alta tensão, conta Kemmer. Para chegar até a região onde havia postos de votação, o motorista da van tinha que dirigir muito rápido. 

Ponte Antonovskiy (Foto: Daniel Simi)

“A gente estava com muitos carros militares em nossa frente e atrás tinha um antimíssil enorme, que andou com a gente por vários quilômetros. Isso porque este era o lugar mais perigoso.”

Vale lembrar que até o momento em que esta entrevista foi concedida, os ataques de Kiev eram contra território ucraniano, porém, separatista. Com a anexação das quatro regiões, incluindo Kherson, essas ações passam a ser ofensas à própria Rússia.

Referendo 

Em meio à tragédia narrada por Kemmer, como era possível que as pessoas realmente expressassem sua vontade no referendo? Perguntamos a ele. Vale destacar que Kherson teve a mais baixa participação na votação e também a menor taxa de adesão à Ucrânia, 76,86% e 87,05%, respectivamente. Eis a resposta:

“É muito difícil falar que houve um processo democrático lá, não por falta de democracia, mas de estrutura, de segurança, entende? É muito difícil alguém conseguir dar uma estrutura para as pessoas se sentirem seguras para votar.”

Prédios destruídos na região de Kherson (Foto: Daniel Simi)“Acompanhamos seções menores”, explica o observador, “que não registravam tantos votos porque elas não podiam ficar muito tempo em um só lugar. Os postos de votação eram sempre itinerantes e a mudança de local fazia parte da estratégia de segurança contra bombardeios”.

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“Não chegamos a ver filas, mas sim, tinha gente votando, só que não eram muitos”, conta. As coisas funcionavam mais ou menos como em outros locais de votação, com voluntárias e voluntários se organizando para garantir o processo, verificar os documentos, custodiar as urnas. “Era aquele mesmo esquema de senhorinhas votando e pessoas aguardando para votar”, observa.

Na segunda cidade por ele visitada na região, Antonivka, muitas casas têm marcas de tiro. Na verdade, tem tiroteio três vezes por dia e uma bomba cai a cada quatro. A tensão era muito grande porque “fazia três dias que não tinha bombas, então tínhamos que agir muito rápido”.Centro de votação em Kherson (Foto: Igor Kemmer)

Apesar de ser parte de uma missão oficial do órgão eleitoral que organizou o referendo, ele conta que “algumas pessoas não quiseram conversar com os observadores, entre os quais estavam experientes jornalistas de guerra”. “Por quê?”, perguntamos: “estávamos com muita segurança. Acho que isso assustava um pouco”.

Ainda assim, ele conseguiu conversar com algumas pessoas e destaca uma figura em específico: “era uma mulher muito arrumada. Ela saiu de longe para votar. Eu perguntei o motivo e ela disse que queria que as coisas ‘voltassem à normalidade’”. Kemmer ressalta que para que aquela mulher teve que atravessar quase tantas dificuldades quanto ele para chegar ao posto de votação.

A comissão viajou por oito horas dentro do território separatista até chegar na cidade em Kherson.

Na região, escolas, ônibus, teatros, centros de refugiados e até calçadas foram transformados em centros de votação. “Perguntei quando a situação voltaria à normalidade e me responderam que, assim que acabasse o referendo e ele fosse aprovado, as escolas e os hospitais voltariam a funcionar… hoje eles não têm nada. Kherson é uma cidade fantasma”.

Tivemos um tempo muito curto para ir ao banheiro e almoçamos ali, junto com a população. Na sequência, fomos verificar outro centro de votação e pudemos ver locais que foram bombardeados”. 

“Foi péssimo, porque a cidade estava muito destruída e vazia”, mesmo assim algumas pessoas permanecem. 

Um dos locais que seria usado como centro de votação, inclusive, havia sido “destruído três semanas antes. Era uma creche, com desenhos infantis… ainda dá para ver os desenhos. Era um prédio grande, acho que tinha ensino fundamental também”.

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