Ao anunciar, dois anos atrás, a produção da série “O Anjo de Hamburgo”, a Globo informou em seu site: “Contará a história de Aracy de Carvalho, brasileira que salvou a vida de centenas de judeus na Alemanha durante a 2ª Guerra Mundial. Pouco conhecida em seu país de origem, foi uma heroína, inconformada com o regime nazista e terá, pela primeira vez, sua narrativa retratada”.
Realizada em parceria com a americana Sony Pictures Television (SPT), é a primeira série totalmente em língua inglesa da emissora brasileira. Foi criada e escrita por Mario Teixeira (“I Love Paraisópolis”, “Liberdade, Liberdade”, “O Tempo Não Para”), com colaboração da inglesa Rachel Anthony (“Ransom”, “Mistresses”). A direção é do experiente Jayme Monjardim. Sophie Charlotte encarna Aracy e Rodrigo Lombardi vive o escritor Guimarães Rosa, com quem ela foi casada.
Como muitos outros casos de figuras que arriscaram vidas e carreiras para ajudar judeus em perigo na Segunda Guerra, e tiveram suas histórias retratadas em livros e filmes (“A Lista de Schindler” é o mais famoso), a história de Aracy parece muito atraente. O problema é que há muitas indicações de que, a seu respeito, construiu-se um mito maior do que a realidade.
Ainda sem data de estreia confirmada, mas já inteiramente gravada, “O Anjo de Hamburgo” parte de uma premissa que, para muitos historiadores, não é comprovável. Faltam elementos concretos que corroborem a afirmação feita pela Globo de que Aracy de Carvalho (1908-2011) foi uma “heroína”. Da mesma forma, é questionável que ela, não sendo diplomata, tenha salvado centenas de judeus ajudando a emitir vistos irregulares no consulado do Brasil em Hamburgo para que eles deixassem a Alemanha nazista entre 1938 e 39.
Relatos sobre a suposta ajuda humanitária de Aracy levaram ao seu reconhecimento, em 1982, como uma “Justa entre as Nações” pelo Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém. Trata-se de uma homenagem concedida a não judeus que auxiliaram e salvaram, desinteressadamente e eventualmente se expondo a riscos, pessoas de origem judaica perseguidas pelo nazismo
O museu levou em consideração relatos de quatro pessoas que declararam ter obtido vistos para deixar a Alemanha no consulado do Brasil em Hamburgo. Os depoimentos consideram ter sido Aracy a responsável pela emissão dos vistos.
Os historiadores Fábio Koifman e Rui Afonso se debruçaram sobre os arquivos do Ministério das Relações Exteriores e concluíram, após examinarem os vistos concedidos no período mais crítico de fuga de judeus da Alemanha, “que nenhum visto irregular ou qualquer ilegalidade foi praticada pelo serviço consular da representação brasileira em Hamburgo no período em que a ajuda humanitária a perseguidos judeus é atribuída”.
Em outras palavras, o estudo, recém-publicado em “Judeus no Brasil: História e Historiografia” (Garamond, 480 págs., R$ 80), conclui que não houve nenhum gesto de heroísmo por parte dos funcionários do consulado. Vistos foram emitidos de acordo com as determinações do Itamaraty. João Guimarães Rosa, vice-cônsul, e Joaquim Antônio de Souza Ribeiro, cônsul, apenas cumpriram o que a legislação brasileira indicava, assim como outros consulados brasileiros na Europa no período. Já Aracy, que não era diplomata, mas funcionária contratada, não tinha poder de emitir vistos nem condições de adulterá-los.
Procurada, a Globo tomou conhecimento do artigo dos historiadores, mas não quis comentá-lo.
O que ocorreu no consulado brasileiro de Hamburgo
A procura por vistos para deixar a Alemanha se intensificou a partir do episódio que ficou conhecido como A Noite dos Cristais, um ataque organizado pelo governo nazista contra os judeus na Alemanha entre 9 e 10 de novembro de 1938. Lojas foram saqueadas, muita violência foi cometida e cerca de 30 mil homens foram presos.
Entre A Noite dos Cristais e a eclosão da Segunda Mundial, em 1º de setembro de 1939, o regime nazista mobilizou esforços, por meio do confisco patrimonial e do terror, com o objetivo de coagir os judeus a deixarem o país. É neste período que se intensifica a busca por vistos nos consulados dos mais diversos países.
Os consulados brasileiros de Hamburgo e Antuérpia (Bélgica), cidades portuárias, estão entre os mais procurados por cidadãos que desejavam fugir da Alemanha.
A afirmação de que vistos irregulares foram concedidos no consulado de Hamburgo não se sustenta, apontam os historiadores. Mesmo o visto obtido por Margarethe Levy, principal testemunha em favor do heroísmo de Aracy (e também personagem da série da Globo), não tem qualquer traço de irregularidade. “Não só as concessões foram absolutamente regulares, como também os registros dão conta de que Souza Ribeiro realizou as devidas consultas junto ao MRE (Ministério das Relações Exteriores) e seguiu rigorosamente as instruções que recebeu do Itamaraty”, escrevem.
E mais: “Uma vez no Brasil, não há registro de que um único portador tenha tido dificuldades no desembarque ou, conforme ocorria com regularidade quando algum cônsul emitia um visto irregular, de que se tenha produzido reclamações por parte das autoridades imigratórias junto ao MRE, questionando a irregularidade ou até denunciando a emissão ilegal de um desses vistos”.
A maior parte destes vistos era “temporário”, mas de um modo geral os imigrantes, posteriormente, já instalados no Brasil, conseguiram transformá-los em “permanentes”. Foi o caso, por exemplo, de Karl Franken, outro nome citado como “salvo” por Aracy. Sete meses depois de desembarcar no Brasil com um visto temporário, ele teve o seu status atualizado como permanente, e uma informação a esse respeito foi enviada ao cônsul de Hamburgo. Perguntam Koifman e Afonso: “Como um visto concedido de maneira irregular poderia permitir ao portador a tramitação regular de seu pedido de transformação de temporário em permanente sem óbice de qualquer natureza?”.
Mitos e verdades
Os autores examinaram os 90 vistos temporários concedidos a judeus nos primeiros três meses de 1939. Em todos eles consta, como exigia o governo brasileiro, a “origem étnica” dos candidatos à viagem. Esta constatação coloca em xeque outro ato heroico atribuído a Aracy, o de que ela deixava de colocar a letra “J” (de “judeu”) nos papéis dos solicitantes para facilitar a concessão dos vistos.
No depoimento de Margarethe Levy ao Museu do Holocausto ela menciona o nome da família Katzenstein na lista dos que teriam sido “salvos” graças à ação de Aracy. O visto que uma senhora com este sobrenome recebeu em Hamburgo foi dado por ordem do Ministério das Relações Exteriores, mostram os historiadores, pois a sua filha já morava no Brasil e obteve no MRE o certificado que autorizava a vinda de sua mãe. Outros casos semelhantes a este são relatados no livro, levantando a hipótese de que Aracy ganhou o crédito por ter resolvido problemas que, na realidade, não existiam.
Outro caso curioso. No relato de Margarethe Levy, incluído no dossiê que levou ao reconhecimento de Aracy como “Justa” pelo Yad Vashem por seu trabalho em Hamburgo, constam a ajuda que a brasileira deu ao casal Alfred e Margarete Jacobsberg, que na verdade conseguiu seus vistos em Berlim, e da família Tuch, que obteve os seus na Antuérpia.
Como se explicam todos estes depoimentos? Há algumas questões em jogo. Em primeiro lugar, são lembranças de fatos ocorridos 30 anos antes, sujeitas a emoções e distorções. Ou à falta de informação.
Outro aspecto a se levar em consideração é que os judeus eram muito maltratados na Alemanha em fins de 1938 e início de 1939. Aracy falava bem alemão e recebia os candidatos a visto com atenção e cuidados. Era educada e gentil. É natural que as pessoas que não faziam ideia de como as regras funcionavam acreditassem no que ela dissesse e depois (ou antes da concessão) a considerassem responsável pelos vistos.
As dúvidas sobre o heroísmo de Aracy já eram conhecidas em 2018, quando a coprodução internacional da Globo com a Sony começou a ser produzido. Naquele ano, a jornalista Patricia Kogut publicou em sua coluna no jornal “O Globo” informando que Koifman e Afonso defendiam que “muito do heroísmo (atribuído à brasileira) é mito”.
Ambos são especialistas neste assunto. O luso-canadense Afonso é autor de “Um Homem Bom”, a história de Aristides de Sousa Mendes, o diplomata português que desafiou o ditador Antônio Salazar, salvou milhares de vidas do Holocausto e viveu seus últimos dias na miséria.
Já o brasileiro Koifman é autor de “Quixote nas Trevas”, uma biografia de Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França, que emitiu de próprio punho centenas de vistos para judeus e não judeus que buscavam fugir da Europa durante a Segunda Guerra. Entre as pessoas salvas pelo diplomata estão o diretor teatral Zbignew Ziembinski e o produtor musical Oscar Oreinstein.