Uma multidão toma os gramados da Esplanada dos Ministérios, na capital federal. Urra palavras de ordem, empunha bandeiras, envolve nelas seus corpos. Caminha para um lado, para o outro, seu destino sempre fora de campo.
As cenas foram capturadas por Mauro Restiffe nas cerimônias de posse dos dois presidentes que dão o tom da polarização do país hoje. À esquerda —e o fotógrafo não esconde um sorriso ao dizer isso—, estão os registros da chegada de Lula ao poder em 2003. Um vermelho esmaecido tinge as poucas imagens coloridas de uma espécie de arquipélago fotográfico estendido pela parede, preto e branco em sua maior parte. À direita, estão os cliques da posse de Bolsonaro, feitas a convite deste jornal há dois anos. Ali, reinam o verde e amarelo.
Restiffe conta que a experiência de fotografar os eventos foi completamente distinta. No primeiro, diz, a sensação era de liberdade, da “posse do povo sobre a arquitetura do poder”. Praticamente não havia bloqueios no gramado. A certa altura, os apoiadores chegaram a invadir um espelho d’água. “Virou uma piscina, uma festa.”
Anos depois, na posse de Bolsonaro, as barreiras se multiplicavam. Ao chegar à Esplanada, Restiffe ouviu dos policiais militares que não poderia entrar com a sua Leica, mesmo que a lista de itens proibidos não incluísse câmeras. Quando enfim alcançou o local, se deparou com mais cercas, passagens interditadas, ordens ambíguas.
Mesmo com as diferenças narradas pelo artista, o que salta aos olhos diante do embate fotográfico são as semelhanças entre as cenas retratadas. Duas encarnações do Brasil se sobrepõem ali, o país do futuro eternamente condenado a repetir o passado.
Esse embaralhamento temporal parece contaminar toda a 34ª Bienal de São Paulo, que abre agora após um adiamento de um ano por causa da pandemia.
Camadas se acumulam nos fotogramas do belga Dirk Braeckman até que a paisagem original se perca num amontoado de ondas, pedras, nuvens. Membros de um coral infantil popular na antiga Iugoslávia se reúnem para cantar um hino patriótico 20 anos depois da sangrenta desintegração do país, os versos “meu país é o mais bonito de todos” hoje sem sentido. A americana Andrea Fraser finge ser uma repórter televisiva na emblemática Bienal da Antropofagia, organizada por Paulo Herkenhoff em 1998, e mostra como, afora a tecnologia de captação —o material é todo em VHS—, o Brasil pouco mudou de lá para cá.
É dos anos da ditadura que vêm os ecos mais pungentes de um passado cada vez mais próximo, no entanto.
Carmela Gross oculta volumes misteriosos sob lonas de caminhão numa série que exibiu em outra edição histórica, a Bienal do Boicote, de 1969 —então, vários artistas se recusaram a participar da mostra em protesto contra o regime militar. O horror, parecem sussurrar “A Carga”, “Barril” e “Presunto”, não surge às claras, mas disfarçado do ordinário, da banalidade urbana.
Ao lado, uma gravura criada por Regina Silveira também no auge da repressão traz um tanque militar idêntico ao que vimos desfilar nas ruas de Brasília há menos de um mês. Sua sombra, distorcida, se esparrama pelo papel, assim como as de outros ícones de uma suposta identidade brasileira —jogadores de futebol, políticos em conchavo, “imagens de poder para comentar o poder”, nas palavras da artista. Mesmo que não tivessem como objetivo ilustrar fatos específicos, valiam em 1981 e seguem valendo hoje, diz Silveira.
À frente desta edição do evento, o italiano Jacopo Crivelli Visconti diz que essa sobreposição de passado e presente começou como uma estratégia curatorial. A ideia era que os visitantes se deparassem com obras de artistas da mostra em vários momentos e contextos diferentes. Assim, seriam capazes de articular novas —e mais complexas— relações entre elas e o entorno, escapando das polarizações e cancelamentos que marcam os nossos tempos.
Daí, portanto, o projeto de espalhar mostras dos artistas participantes por 25 instituições na cidade. Daí também o plano de apresentar três exposições individuais no pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera, nos meses anteriores à abertura da mostra principal.
Com o coronavírus, no entanto, parte dessas propostas caiu por terra. Das três individuais planejadas, só a da peruana Ximena Garrido-Lecca foi inaugurada, um mês antes de toda a programação cultural da cidade parar, em fevereiro. O número de exposições em espaços parceiros que abre junto com a mostra principal foi de 25 para 17.
Ao mesmo tempo, aquele acúmulo de tempos proposto pelos curadores ganhou contornos muito mais concretos por causa da pandemia, diz Crivelli Visconti. “Sair na rua, andar por aí já é uma emoção”, diz. “Você sente como tudo ao redor mudou.”
Ele lembra um jardim criado por Garrido-Lecca a partir de favas manchadas, que arqueólogos supõem terem sido usadas como um meio de escrita pelos moche, povo pré-colombiano que viveu no atual território do Peru. As plantas continuaram o seu ciclo no pavilhão nesses tantos meses de quarentena, e chegaram a ser vistas pelo público novamente numa prévia da Bienal realizada no fim do ano passado, “Vento”.
“É a mesma obra, mas ela quer dizer algo totalmente diferente. A maneira como o tempo se sedimenta nas coisas, e muitas vezes isso acontece de modo tangível nessas obras, é um elemento que nos ajudou a construir a Bienal”, afirma Crivelli Visconti. “Não acho que isso seja uma condição indispensável para entender a mostra. Mas quem acompanhou esse processo percebe que ela não é um instantâneo. Ela é um processo, um ensaio.”
O italiano diz que não houve grandes transformações conceituais na Bienal desde o seu adiamento. Mesmo os temas dali que parecem ter sido recortados do noticiário da semana, como a escalada autoritária do governo ou a questão indígena, estavam em jogo desde o princípio —a pandemia só os agravou, diz Paulo Miyada, braço-direito de Crivelli na exposição.
“Quando começamos a trabalhar, no finzinho de 2018, início de 2019, já se partia do pressuposto que estávamos vivendo um momento histórico decisivo, não só no Brasil como no mundo. Não é à toa que a mostra já se chamava ‘Faz Escuro Mas Eu Canto’.”
A dupla conta que a mudança mais radical sofrida pela mostra se deu, assim, na sua disposição no espaço. O plano original era que as paredes que repartem a arquitetura sinuosa de Oscar Niemeyer fossem muito mais numerosas. Mas a experiência de montar “Vento”, que transformou o prédio modernista num monumento ao vazio —eram cerca de 60 trabalhos espalhados por quase 25 mil metros quadrados—, fez com que os curadores decidissem abolir várias dessas separações, dando mais fluidez ao conjunto.
Além dessas paredes, cada uma das alas da exposição se organiza em torno do que os curadores chamam de enunciados, objetos que não são bem obras de arte, mas que dão pistas sobre os temas caros a esta Bienal.
Mais de uma centena de retratos do ativista Frederick Douglass, centrais para a luta abolicionista nos Estados Unidos no século 19, introduzem obras que discutem o fluxo de pessoas e informações pelo globo, ontem e hoje —de uma corda que Arjan Martins estende, em forma de triângulo, por um andar inteiro do pavilhão, fazendo referência à rota do tráfico de escravos no Atlântico, a uma apresentação de slides de Tony Cokes que questiona o quanto a circulação das imagens de protestos na mídia de fato contribui para avançar as batalhas sociais.
Adiante, um delicado bordado feito na cadeia pelo “almirante negro” João Cândido, líder da Revolta da Chibata, une peças criadas em situações de clausura. Entre elas, cerca de 15 pinturas que Antonio Dias fez na Itália nos anos 1970 e que agora são exibidas pela primeira vez em conjunto no Brasil. Retângulos negros com uma ou outra ideia evocada em letras brancas, eles são sua “arte negativa para um país negativo”, telas em luto pelo país sob o regime militar.
À frente delas, estão as finas aranhas de metal da norueguesa Hanni Kamaly. Cada uma homenageia uma pessoa que se foi. São antimonumentos, diz ela, que nos lembram a fragilidade da vida dos que não foram heróis.
Outros enunciados podem ser bem mais desafiadores, em especial para quem costuma passar ao largo dos textos explicativos desses eventos.
Uma dedicatória do romeno Constantin Brancusi aos então recém-casados Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade serve, por exemplo, de guarda-chuva para uma seção inteira de associações livres entre trabalhos tão diferentes quanto os desenhos serpenteantes de Joan Jonas e as esculturas da chinesa Guan Xiao, que parecem combinar aparelhos de pilates e ETs de filmes B. Ou os mantos de plumas de Daiara Tukano e os “amazoninos” de Lygia Pape que, colados à parede, lançam seus tentáculos com garras geométricas sala adentro.
Outro assunto difícil de acessar para quem não ouviu falar nem de um, nem de outro, é um confronto entre as teorias do francês Antonin Artaud, idealizador de um teatro do choque, da ruptura, e do martinicano Edouard Glissant. O último, espécie de âncora conceitual desta edição, cunhou o direito à opacidade —isto é, que na relação com o outro, nem tudo tenha que ser dissecado à luz da razão, compreendido.
Questionado sobre o quanto essa complexidade pode ser uma barreira para o público da Bienal, Paulo Miyada afirma que, embora esse enunciado seja particularmente denso, as obras à sua volta oferecem outras portas de entrada para os mesmos assuntos de que ele trata, como os traumas da colonização.
Além do mais, é só acolhendo essa complexidade que enfrentaremos com franqueza questões políticas, sociais, de identidade, acrescenta ele. “Precisamos dar lugar para as coisas que não têm caixinhas certas na história. Para as miscigenações, as crioulizações, as pessoas que têm múltiplas identidades nacionais e de gênero. Para que as coisas não sejam A ou B. Senão, haverá sempre uma violência muito brutal, seja ela política, humana, sexual.”
Crivelli Visconti defende aquele mesmo direito à opacidade para a Bienal que apresenta ao público agora. “Sinto que uma barreira quando se visita uma exposição é as pessoas acharem que têm que entender tudo, quando na verdade, há muita coisa que não se vai entender. Há um nível que as palavras não podem traduzir.”
Colaborou João Perassolo