Marilyn Monroe é um dos maiores ícones da cultura pop em todos os tempos. Foi a primeira mega estrela do cinema, em uma época em que o poder ainda estava na mão dos estúdios. Peitou os executivos que mandavam em Hollywood, buscando independência em suas escolhas e sua carreira, ao mesmo tempo em que se dedicava a estudar e melhorar em seu ofício.
Sua silhueta logo tornou-se emblemática, assim como seu nome ajudava a transformar filmes em sucessos nas bilheterias. Ciente do poder de sua imagem, Marilyn foi fundamental em lapidar sua personalidade pública, buscando transcender o retrato que a indústria insistia em projetar. Não deu tempo. Há 60 anos, ela teve uma morte trágica e entrou para a história.
Nada disso, contudo, entrou na mistura de “Blonde”. Baseado no livro da escritora Joyce Carol Oates, o filme de Andrew Dominik navega entre a biografia convencional e a ficção histórica, misturando momentos da vida da estrela com passagens totalmente inventadas. Sem nenhum compromisso factual ou moral com sua biografada, ele parece existir com uma única função: solapar a imagem de Marilyn de forma vil e cruel.
Se existe algum motivo para sentar ao longo de quase três horas de tortura, ele atende pelo nome de Ana de Armas. É lamentável ver uma atriz cada vez mais segura de seu talento entregar-se tão por completo a um projeto que faz pouco caso de sua contribuição.
Vamos deixar claro: Ana de Armas, ao longo de “Blonde”, é Marilyn. Seu trabalho é uma das raras configurações de estrelas no firmamento em que atriz e personagem se encontram, se completam e se misturam de maneira inexorável. Em nenhum momento eu enxerguei Ana em cena. Era Marilyn. Sempre Marilyn.
Não só como reprodução visual, o que Hollywood faz com um pé nas costas. Eddie Redmayne fez basicamente um cosplay de Stephen Hawkins em “A Teoria de Tudo” e por isso foi regiamente premiado. Ana de Armas, por sua vez, não veste uma fantasia. Ela divide sua alma com Marilyn, humanizando cada momento, cada triunfo e cada tragédia.
A vida de Marilyn Monroe, afinal, foi de fato marcada por uma tristeza profunda. Ela cresceu sem conhecer o pai e foi largada em um orfanato quando o estado mental de sua mãe se tornou insustentável – tudo isso antes de a menina ter dois dígitos de idade. Casada aos 16 anos, ela foi modelo estilo pin up e, aos 20, pediu o divórcio ao assinar seu primeiro contrato em um estúdio.
O caminho para o estrelato passou por profundas mudanças físicas e também pelo abuso, físico e psicológico, nas mãos dos donos do poder em Hollywood. Sua carreira, mesmo quando ela se tornou de fato uma estrela, enfrentou ondas de choque de sua vida pessoal conturbada, com casamentos falidos e a dor de nunca consumar uma gravidez.
É de se esperar que uma biografia de Marilyn Monroe aborde esses aspectos de sua vida, culminando com sua morte, até hoje cercada em mistério. Mas é desesperador que “Blonde” reduza sua trajetória unicamente a isso: dor, sofrimento e mais dor.
Andrew Dominik tem uma carreira curta mas interessantíssima. Ainda na Austrália ele dirigiu o ótimo “Chopper” (2000), com Eric Bana, que foi seguido sete anos depois pelo ótimo “O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford”, com Brad Pitt. Os longos hiatos entre seus projetos indicavam cuidado com o material, que manteve sua excelência em 2012 com “O Homem da Máfia”, mais uma vez com Pitt.
“Blonde” mostra esse esmero na direção de atores e na reprodução meticulosa de época. Em alguns momentos, o casamento da habilidade do diretor com o talento irretocável de Ana de Armas eleva o filme de forma sublime. Preste atenção no momento em que o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody), que depois se tornaria marido de Marilyn, se impressiona e se emociona com o conhecimento da atriz sobre o papel que ela busca interpretar.
É incompreensível, portanto, o modo como “Blonde” desaba pesadamente na mesma vala da exploração barata que ele pretende refletir. O texto, assinado pelo próprio Dominik, transforma Marilyn em coadjuvante de sua própria história, uma vítima pouco inteligente de acontecimentos alheios à sua vontade.
A começar pela insistência fetichista em fotografar Ana/Marilyn sem roupas. Cenas de nudez, como qualquer outra ferramenta narrativa, precisam existir para contar a história. Em “Blonde”, porém, não existe regra para Dominik deixar sua estrela nua.
O mesmo vale para os supostos abortos que Marilyn fora obrigada a fazer – e que não encontram nenhum respaldo histórico. São cenas que se assemelham a tortura, com ângulos vulgares e um feto em CGI retratado ad nauseam como um bebê praticamente formado. É ofensivo e desnecessário.
Os pedaços fictícios do roteiro, como o trisal formado com os herdeiros dos lendários Charles Chaplin e Edward G. Robinson, ou mesmo o encontro grotesco e nauseante com John Kennedy, são o sintoma dos problemas. Tudo degringola quando as sequências não se conectam, tornando-se fragmentos aleatórios em um mosaico dedicado a reafirmar a imagem de “loira burra” de Marilyn. Estereótipo que, na vida real, ela combateu ardorosamente.
Ana de Armas merecia sorte melhor. Seu trabalho como Marilyn Monroe é daquelas interpretações que cimentam o lugar de uma atriz na história. “Blonde”, uma experiência que tem prazer em intensificar a imagem da estrela como vítima sofredora, dificilmente será abraçado na temporada de premiações, dificultando o reconhecimento de sua protagonista.
Aqui estamos, seis décadas depois da morte de Marilyn, testemunhando mais uma vez a redução de sua figura a um objeto sexual explorado pela mídia. Sem compaixão ou carinho, apenas mais uma caricatura, um caminho pavimentado unicamente com dor e sofrimento, “Blonde” é indigno do talento superlativo de Ana de Armas e do brilho fulgurante e eterno de Marilyn Monroe.