Candidato à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) beneficiou empresários aliados do governo e líderes evangélicos com a sanção de uma lei que livrou da extinção antigos canais de TV por UHF.
O grupo do missionário RR Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, foi um dos principais interessados na nova lei, que foi sancionada pelo presidente na quinta-feira (22). A regra também beneficia empresas ligadas a radiodifusores, como a Band.
Soares é atuante cabo eleitoral da campanha bolsonarista. Ele e sua mulher chegaram a receber passaporte diplomático do governo, em maio.
No ano passado, em outra medida, o presidente favoreceu emissoras evangélicas e canais de apoiadores, como a Rede Brasil, pertencente a Marcos Tolentino. Para costurar sua base de apoio no Congresso, o presidente permitiu que esses canais passassem a ser incluídos em pacotes de TV paga vendidos pelas operadoras.
RR Soares detém 4 dos 22 canais beneficiados pela sanção da nova lei. Eles foram comprados do grupo Abril, em 2014, e as licenças de uso das frequências venceram em 2018. Frequências são avenidas no ar pelas quais as operadoras fazem trafegar seus sinais.
Pelas novas regras, foi garantido que canais antigos de TV paga transmitidos por UHF possam ser regularizados como canais da TV paga.
Segundo congressistas e técnicos do Ministério das Comunicações e da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), o religioso atuou diretamente pela aprovação da lei.
A lei foi proposta pelo deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), pastor da Assembleia de Deus do Brás–Ministério de Madureira e que preside a Frente Parlamentar Evangélica da Câmara. No ano passado, o parlamentar participou de uma motociata, na garupa do presidente Bolsonaro.
A expectativa é que a nova lei dê segurança jurídica para que as empresas possam agora obter novos empréstimos.
Hoje, cerca de 16 grupos podem transmitir sua programação por UHF, sendo 25% do tempo como emissoras abertas, e o restante (75%), como canais de TV paga (exigindo instalação de decodificadores nas residências).
Esses canais foram obtidos sem licitação e livres de encargos ainda no governo José Sarney, em 1988.
Conhecidos no setor como os “dinossauros da TV paga”, eles estavam com seus dias contados, segundo técnicos da Anatel, e deveriam ter sido extintos, como determinava a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAc), em vigor desde 2011.
Essa lei já permitia a migração para o sistema atual de regulação dos canais pagos. No entanto, havia prazo de validade para o uso das frequências.
Técnicos do Ministério das Comunicações afirmam que, após o vencimento do direito de uso, as emissoras teriam de adquirir novas frequências em leilão. Antigos exploradores teriam de entregar as que exploravam.
Por isso, as empresas pleiteavam no governo e na Anatel a manutenção dessas frequências, o que vinha sendo negado.
Com a lei sancionada por Bolsonaro, essa restrição caiu por terra, abrindo caminho para que os pedidos antes negados pela Anatel agora sejam aprovados.
Enquanto não obtiverem a autorização da agência, as emissoras poderão continuar operando “em caráter precário”. Poderão ainda preservar sua frequência atual, desde que não haja impedimento técnico.
Ainda segundo técnicos da agência, caso isso não seja viável, elas poderão migrar de frequência, como recentemente ocorreu com as emissoras de TV, que foram deslocadas devido à implantação da telefonia 5G.
Inicialmente, os detentores das outorgas antigas de TV fechada queriam converter suas licenças para canais abertos de TV, o que a lei da TV paga vetou.
A lei sancionada por Bolsonaro não deu status de radiodifusão plena a esses grupos, mas permitiu que essas frequências sejam renovadas automaticamente. Além da segurança jurídica para novos empréstimos, o arcabouço permitirá que elas possam alugar sua grade de programação.
Na prática, isso já vem ocorrendo porque as empresas passaram a deter a posse dessas frequências por tempo indeterminado.
Em julho de 2021, em evento no Palácio do Planalto, o deputado Cezinha agradeceu ao presidente e ao ministro das Comunicações, Fábio Faria, por modificar a legislação do setor, permitindo que canais religiosos e de empresários aliados do governo fossem incluídos obrigatoriamente nos pacotes de TV paga vendidos por operadoras.
Essa medida gerou a possibilidade de receita adicional para esses canais.
Os evangélicos são uma importante base de apoio para a reeleição de Bolsonaro. Pesquisa Datafolha divulgada na quinta (22) mostra estabilidade na corrida presidencial nos dois maiores grupos religiosos. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) segue liderando com folga entre católicos, e Jair Bolsonaro, entre evangélicos.
Entre os evangélicos entrevistados pelo instituto, 50% afirmaram intenção de voto em Bolsonaro, ante 32% em Lula.
A Folha procurou o missionário RR Soares diretamente e acionou seu assessor e seu advogado para comentar o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Sem sucesso, também contatou o deputado Cezinha de Madureira.
O empresário Marcos Tolentino, que comanda a Rede Brasil de Comunicação, disse que, apesar de entender que as antigas TVs por assinatura teriam de terminar as operações, foi voto vencido [no setor] devido a “ações individuais requerendo renovações ou indenizações pelos investimentos realizados no período”.
“Esperamos que, agora, com esse período de dez anos, elas cumpram seu papel”, disse Tolentino.
Segundo o empresário, a Rede Brasil apoia Bolsonaro da mesma forma como apoiou Lula “no momento que fez coisas boas ao país”.
Por meio de sua assessoria, a Anatel afirmou que não foi instada a se manifestar sobre essa matéria no Congresso ao longo da tramitação da proposta no Congresso, que já foi convertida em lei.
No entanto, ainda segundo a agência, manifestou-se a favor da sanção por não vislumbrar qualquer óbice do ponto de vista regulamentar.
Procurado, o Ministério das Comunicações não respondeu.
As antigas TVs por assinatura foram criadas no fim da década de 1980 por lobby de grupos de mídia, especialmente a Abril, interessada em conseguir outorgas de radiodifusão.
Por pressão do setor, o governo acabou criando um modelo híbrido de serviço —parte da programação (25%) podia ser transmitida de forma aberta e gratuita, e o restante (75%), como conteúdo fechado e pago.
No entanto, esse modelo rapidamente se tornou obsoleto. Muitas dessas antigas concessões acabaram integrando a lista de bens das empresas, que começaram a comercializar espaço na programação ou arrendá-las, principalmente para grupos religiosos.