Jean-Luc Godard disse à Folha que não gostava de Spielberg – 13/09/2022 – Ilustrada

As entrevistas de Jean-Luc Godard, morto nesta terça-feira aos 91 anos, costumavam ser verdadeiros acontecimentos e complementos naturais à exibição de seus filmes. Não foi o que ocorreu no Festival de Cannes em 2001, quando o cineasta exibiu seu “Elogio ao Amor” para uma plateia contida. Relembre a seguir os melhores trechos da entrevista concedida pelo diretor à Folha na ocasião.

Por que ignorou a internet num filme tão sociológico como este? Não sou a pessoa ideal para responder a essa questão, pois ainda uso uma máquina de escrever bem velha. Prefiro usá-las. Nietzsche escreveu algo a respeito: máquinas de escrever foram inventadas para pessoas cegas, o que é exatamente o meu caso.


O senhor vem fazendo filmes há 50 anos. O que mudou nesse período? Muito mudou, principalmente a maneira como se produz e como diretores se relacionam entre si. Devido também à invenção da TV. Gostaria de lembrar que o inventor é um alemão, que a batizou de iconoscópio, com a palavra ícone. No cinema, você tem o escópio, mas não o ícone. Daí talvez o aspecto quase religioso e popular da exibição da TV.


O senhor não acha que há muitos filmes hoje em dia em que a violência é levada às últimas consequências? Sim, e violência só pela violência não denota nenhuma reflexão por trás. Nós da nouvelle vague fomos de certa maneira responsáveis pelo aumento da violência, ao criarmos o cinema mais autoral, em que o diretor controla todos os processos.


O senhor menciona Kosovo a certa altura do filme. Por quê? Desde o começo, eu achei que era preciso mencionar um evento dessa magnitude política e social, como já fiz em outros filmes com a Guerra do Vietnã e da Argélia. Tentei mostrar ambos os lados do pensamento, dos sérvios e dos kosovares, mas obviamente manifestei minha preferência pelos kosovares e também critiquei a presença norte-americana na região. Queria discutir a situação e preferi colocar no filme a ir até Belgrado e bater no Emir Kusturica [cineasta nascido em Sarajevo]. Risos.


Qual o seu problema com Steven Spielberg? Não teme que ele o processe por dizer que não pagou nada à viúva pelos direitos de “A Lista de Schindler”? Eu li sobre o não-pagamento no jornal francês Le Monde. Se é um jornal confiável? Eu não sei. Além do mais, trata-se de uma opinião de um dos personagens do filme. Nunca encontrei com Spielberg, não o conheço, mas não sou muito admirador de seus filmes. Citei-o porque seu nome é simbólico.

E critiquei-o muito quando ele decidiu reconstruir Auschwitz em cenário. Acho que não é uma coisa que se deva fazer, sob o risco de transformar o gás mortal que saía dos chuveiros numa espécie de fonte da juventude. Achei que era meu dever apontar o dedo para ele.


Como espera que seja a reação dos habitantes do México e do Canadá às suas considerações sobre a América do Norte? Acho que é bem pouco provável que o filme chegue até eles. Risos.


Numa entrevista recente, o senhor diz que, se algo já foi feito por alguém, não há sentido em repetir a experiência. O senhor nunca se sentiu repetindo? Sim, certamente. Mas, na maioria das vezes, você só percebe muitos anos depois. Eu sempre quis dirigir uma peça, já me convidaram e sempre fiquei tentado em aceitar, acho que há textos fantásticos de Brecht, Shakespeare. E toda a questão do vestiário seria cuidada por outra pessoa, assim como a iluminação, e eu não teria de ir atrás de locações, pois o cenário está sempre lá. Até que pensei: o que eu faria lá, então? E tudo já foi feito. Shakespeare, milhares e milhares de vezes, com sucesso às vezes, outras não… Qual seria o ponto de fazer de novo?

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