‘É uma figura que raros países têm e a gente tem que reconhecer’

Restando menos de um mês para a comemoração do bicentenário da Independência, a expectativa pelo 7 de Setembro deste ano ainda parece misturada com a temperatura do noticiário eleitoral. Mas um núcleo do governo federal trabalha para oferecer à data a pompa que o aniversário de 200 anos merece.

Rafael Nogueira comanda ações para festejar o bicentenário na condição de secretário nacional da Economia Criativa e Diversidade Cultural, órgão ligado ao Ministério do Turismo. A missão é particularmente especial para o filósofo nascido em Santos — ou seja, conterrâneo de José Bonifácio de Andrada, figura emblemática da Independência brasileira.

Muito antes de chegar à secretaria do governo, Rafael já se dedicava ao estudo sobre o principal articulador político do 7 de Setembro, o homem que costurou o contexto de 1822 junto com Leopoldina, a futura imperatriz, e assessorou o príncipe regente Pedro I a se tornar o primeiro imperador do Brasil.

Consultor do filme Bonifácio, o Fundador do Brasil, de 2017, Rafael Nogueira enxerga no perfil multidisciplinar e internacional do personagem um facilitador para a Independência. Na entrevista abaixo, o secretário comenta o papel do político na separação de Portugal e reflete sobre semelhanças do clima de ruptura de 1822 com a realidade política de 2022.

Apesar das tensões pontuais, o professor de história e filosofia exalta a necessidade de o país viver com intensidade as comemorações dos 200 anos como nação independente.

Como surgiu o seu interesse por José Bonifácio?

Depois de fazer filosofia, mergulhei em assuntos como história, ciência e religião, que te abrem a cabeça para muitos outros estudos. Quando fui fazer Direito, percebi que o pessoal de Santos não tinha muita noção de outros formados em Direito de Santos que haviam sido ilustres. Também fiz algumas viagens de estudo pela América Latina e pelos EUA. A impressão das viagens era que os jovens conheciam de memória e com orgulho a história dos seus países. Isso me fez mergulhar mais na história do Brasil. Em 2006, abri um jornal literário na faculdade de Direito e um grupo de estudos para estudarmos humanidades que vão além das disciplinas de aula. Quis começar por personagens históricos que tinham estudado tanto Direito como outras coisas, que eram multidisciplinares. E aí cheguei aos pais fundadores dos Estados Unidos. Você tem o Benjamin Franklin, que era multidisciplinar, o Thomas Jefferson, cientista e multidisciplinar, escritor talentoso. Aqui no Brasil, estava em busca de personagens com essa característica. Sendo de Santos, a figura de Bonifácio grita nas ruas da cidade. A Praça da Independência é um monumento aos irmãos, com José Bonifácio ao centro, Antônio Carlos de um lado e, do outro, Martim Francisco. Você tem a Praça dos Andradas, a Praça José Bonifácio. Aí fui ler os textos dele, tanto sobre ele como escritos por ele. Isso faz mais de 15 anos.

O título de “Patriarca da Independência” faz jus ao papel dele na articulação do 7 de Setembro?

É justo, tanto como patriarca como fundador. O patriarca é como uma figura mais velha, experiente. A imperatriz Leopoldina e o imperador Pedro I, ou príncipe regente, eram muito mais jovens do que o José Bonifácio. É como a figura de um ancião, o sábio, e conseguiu trazer a sabedoria e as ciências da Europa. Ele se via como um sábio, munido de um conhecimento filosófico, e tinha uma visão política muito clara. Tinha formação jurídica também. Era o homem de que Pedro precisava ao seu lado. Há um poema escrito por Machado de Assis, quando Pedro II patrocinou uma estátua de José Bonifácio no Rio de Janeiro, em 1872. O poema se chama José Bonifácio. É um texto de chorar, que trata dos Andradas como os principais feitores da Independência. Ele está equiparado em importância com Pedro I e Leopoldina, e com participação menor havia diversos outros. Mas comecei a escrever por Bonifácio, por ser uma figura grandiosa, um militar que lutou contra Napoleão na Europa. É uma figura que raros países têm e a gente tem que reconhecer.

Rafael Nogueira foi consultor do filme Bonifácio, o Fundador do Brasil | Foto: Reprodução

A relação de Pedro I com as Cortes Portuguesas, beirando a ruptura antes de 7 de Setembro, tem alguma similaridade com o que vivemos hoje na atual tensão entre Poderes?

A época era revolucionária. A Revolução Francesa tinha acontecido umas três décadas antes, e estava no ar um certo espírito revolucionário. Dom João VI não voltou a Portugal, mesmo com a derrota napoleônica. Então os portugueses começam a se revoltar e criar um espírito revolucionário análogo ao da Revolução Francesa. Isso fazia o rei se sentir em perigo, desprestigiado, afinal o rei da França havia sido decapitado. Ele tinha que retornar, e acaba retornando. Depois ficam pressionando Pedro, o príncipe regente. Portugal, quando perde o caráter metropolitano, se transforma, no fundo, em colônia. O Brasil vira o centro, e Portugal se torna periférico. Aí cria uma ciumeira, havia os problemas econômicos, existiam os problemas de patriotismo, já que os ingleses estavam administrando Portugal. Esses revolucionários sentiam a sede verdadeira do poder. Eram revolucionários, mas se sentiam defensores legítimos da civilização portuguesa. Chamavam Pedro I de moleque, de inculto, e isso chegava a Pedro I. Queriam retirá-lo do poder. Aí ele acabou dando um basta, e fez do país um grande Império. Tem relação? Tem, em algumas analogias. Isso resultou numa guerra, entre a Corte Portuguesa e o Império do Brasil, que tinha à sua frente Pedro I. Os excessos das Cortes e a opção das elites daqui e de Pedro I geraram uma guerra. No sentido de um Poder que se sente mais legítimo que o outro, um fica pressionando o outro, e um Poder que acha que o outro é incapaz, tem alguma analogia.

Com a turbulência política atual, inclusive com o 7 de Setembro reservado para movimentos de ruas, você acredita que o bicentenário da Independência acabe tendo menos atenção do que merece?

Não. O bicentenário da Independência não é uma data do governo federal. É uma data do Brasil inteiro. Se a República é uma coisa pública, a data é uma coisa pública, é de todos. Quem olha para o governo federal e exige tudo está no mínimo sendo injusto. Em nome da Secretaria de Economia Criativa e Diversidade Cultural, posso dizer que temos vários projetos. Do dia 6 para o dia 7, a ideia é ter um grande concerto a céu aberto em Brasília. Estamos montando uma olimpíada estudantil voltada à Independência, em parceria com a Câmara e outros ministérios. Estamos montando uma curadoria para um site oficial, com o trabalho de historiadores, para conduzir as pessoas aos livros certos. Estamos fazendo premiações literárias, fizemos na Biblioteca Nacional um encontro de historiadores a respeito do bicentenário, queremos fazer uma coleção, “Os Fundadores”, com documentos oficiais sobre personagens vivos na Independência, um livro de luxo com artigos dos principais historiadores que estudam a Independência. Tem muita coisa sendo feita pelo governo federal, mas não é divulgada pelos grandes veículos de comunicação. Cada município deveria comemorar à sua maneira, cada governo estadual também, e os cidadãos deveriam comemorar também. A gente deveria ter mais consciência de nacionalidade. E não no mau sentido, não aquele nacionalismo que fica odiando os outros, se achando melhor em tudo, mas é a revisão da memória e o orgulho do que foi feito.

É possível dizer que a tutoria de dois anos com José Bonifácio, ainda quando Pedro II era criança, causou algum impacto posterior em sua figura de governante?

Ainda que tenham sido só dois anos de convivência, José Bonifácio era uma figura de quem se falava muito. O irmão dele, Antônio Carlos, foi uma figura proeminente no segundo reinado, ficou muito próximo de Pedro II. Ele nunca deixou de respeitar José Bonifácio, temos o próprio evento em que ele homenageou José Bonifácio com uma estátua. Sem contar que Pedro II foi um estudioso da ciência. Ainda que não tivesse tempo de produzir ciência, mas estava sempre acompanhando, era muito culto. Foi um dos primeiros a testar o telefone, gostava muito de fotografia. Nesse sentido, como um amante da ciência, era uma figura muito mais parecida com o Andrada do que com o próprio pai. Ainda que Pedro I não tivesse sido uma figura inculta. Era leitor de poucos livros, mas livros essenciais, era um compositor de música erudita de muita qualidade. Ainda que tenha cometido erros, criou um país e esteve à frente dele por nove anos. Merece essa reverência. Mas Pedro II tinha mais respeito ao saber em geral, e essa era uma característica mais do Andrada.

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