Sob o título “As absolvições de Bolsonaro“, o artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié, desembargador do TJ-SP e presidente da Academia Paulista de Direito.
Contrariado, no negacionismo científico, climático e democrático, racismo, transfobia e misoginia, e na iminência de sair derrotado nas eleições, esse falso Presidente, cuja prática é a de delegar suas atribuições a quem o imite, contrariando direitos, deveres e políticas públicas constitucionais, sem se importar com o que dizem, recolhido a seus mesquinhos interesses e dos que o acompanham nas mentiras e na distribuição do butim, propõe um golpe.
Não adianta, agora, bradar contra o falso protagonista e lutar por ideais que foram desprezados nos anos de seu governo, mesmo antes, quando se apresentou sua pretensiosa candidatura. Nesse período, falharam muitos. Diante do conjunto de falsidades e de ilícitos, só se pode explicar sua permanência, sem que nada eficiente tenha sido feito para remediar o mal causado por sua ilegítima eleição, apontando a responsabilidade de leis, instituições e pessoas.
As leis mostraram-se inacabadas e imperfeitas para defender o regime constitucional que proclamavam porque hesitaram seus artífices em abandonar seus laços com o regime que as precedeu, dando margem à manutenção de uma série de valores e regras que funcionaram como contrapeso aos principais princípios que enunciaram. O Estado Democrático de Direito transformou-se em regime ambíguo que afirma direitos, deveres e políticas públicas, mas não lhes dá força para impulsionarem uma sociedade de iguais, de livres e de solidariedade, independentemente dos que se interpõem entre o povo – soberano declarado – e os instrumentos de sua soberania.
O grave defeito de nossa Constituição e de nossas leis sobre o sistema político e eleitoral está em não limpar o terreno da representação, para que o povo possa enxergar no representante do poder legislativo a importância que vislumbra no do executivo. Abrir os canais de participação e controle diretos pelo povo, no interior dos legislativos. Se na democracia, não se concede poder sem controle, como justificar concentração de poderes nas mãos de poucos, sem que haja sanção por inação ou ação inapropriada?
As instituições não funcionaram para defender o regime. Há falhas de órgãos da Administração, que deixaram de atuar de acordo com seus estatutos jurídico-políticos. Os poderes legislativo e judiciário, Ministério Público, e sociedade civil paralisaram-se no cortejo de morte que se construiu desde o lançamento de uma candidatura insana. Foram presas fáceis na manipulação da opinião pública e dos instrumentos de direito, no desenho de um imaginário cenário de corrupção institucional, pretexto para intervenção antijurídica nos processos judicial e político.
Como explicar o protagonismo do judiciário e do Ministério Público, sem amparo na realidade, repleto de imaginação de princípios que contrariam a Constituição, recomendação de remédios, invenção de argumentos e teses antijurídicos?
Essa distância entre o espaço do discurso e da ação é sensível nas funções jurídicas públicas, em que o ‘mainstream’ se faz em performático, em contraste com um cotidiano de omissões nos deveres básicos de dialogar com sociedade e profissões jurídicas que a representam. É preciso retomar a ideia do controle externo das funções jurídicas públicas, abandonada em nome da centralização administrativa que representam os Conselhos Nacionais.
Das pessoas que deixaram de agir ou que agiram para que essa afronta à vida pública de um povo se tenha constituído como enfermidade monstruosa é preciso reclamar os nomes. Sobretudo das que negaram a publicidade e a ética da vida pública, para satisfazer ambições e interesses.
O resultado foi a sucessão de absolvições desse regime anticonstitucional, militante contra o Estado Democrático de Direito, vergonhoso embaraço das relações internacionais do Brasil, repugnante construtor e assassino convicto de periferias, de exclusões, de desigualdades, de preconceitos contra o povo, em todas as suas nuances, chamadas erroneamente de minorias, quando, em verdade, constituem o que somos.
Nenhum processo de impeachment foi sequer apreciado pelos presidentes da Câmara. Nenhuma representação penal foi acolhida pela Procuradoria-Geral, a ação perante o Tribunal Superior Eleitoral resultou na decisão de que houve abuso, mas sem prova de ter repercutido no inusitado resultado eleitoral.
A Ação de Incapacidade movida por importantes membros da sociedade civil aguarda, desde maio de 2021, um despacho inicial que encaminhe o reconhecimento da óbvia e tardia necessidade de afastamento de um usurpador de uma das mais importantes funções públicas de nosso regime.
A sociedade espera esse simples despacho que explicite experiência jurídica e afeto pela legitimidade redentora. Não se tolera o crime de destruir a democracia, trabalho cotidiano dos que, segundo a Constituição, são donos do poder.
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