Os alunos das escolas russas, a partir do primeiro ano, terão aulas semanais em que assistirão a filmes de guerra e farão tours virtuais da Crimeia. Terão aulas regulares sobre temas como a situação geopolítica e valores tradicionais. Além da tradicional cerimônia de hasteamento da bandeira, começarão a ter aulas que vão celebrar o “renascimento” nacional sob a égide do presidente Vladimir Putin.
E, conforme legislação sancionada pelo líder na quinta-feira (14), todos serão incentivados a filiar-se a um novo movimento patriótico de jovens nos moldes dos chamados “Pioneiros” da União Soviética, com suas gravatas vermelhas. O movimento será dirigido pelo próprio presidente Putin.
Desde a queda da União Soviética, as tentativas do governo russo de imbuir estudantes de uma ideologia de Estado têm sido mal-sucedidas, segundo um burocrata-sênior do Kremlin, Serguei Novikov, falou recentemente a milhares de professores num workshop online. Mas agora, em meio à Guerra da Ucrânia, Putin deixou claro que isso precisa mudar.
“Precisamos saber como contagiar os alunos com nossa ideologia”, disse Novikov. “Nosso trabalho ideológico tem por objetivo conscientizá-los.”
Com a guerra perto de completar cinco meses, as ambições vastas de Putin para o front doméstico estão começando a ficar claras: uma reprogramação ao atacado de toda a sociedade de modo a acabar com 30 anos de abertura para o Ocidente.
O Kremlin já encarcerou ou forçou ao exílio praticamente todos os ativistas que se manifestaram contra a guerra; criminalizou o que restava do jornalismo independente; e vem reprimindo acadêmicos, blogueiros e até mesmo um jogador de hóquei no gelo cuja lealdade à nação foi posta em dúvida.
Mas em nenhum lugar essas ambições ficam mais claras que na corrida do Kremlin para reformular o ensino dado aos alunos das 40 mil escolas públicas do país.
As iniciativas educacionais em âmbito nacional, que entrarão em vigor em setembro, fazem parte de uma campanha do governo para doutrinar os alunos com a versão de patriotismo de Putin, militarizada e antiocidental, ilustrando o alcance de seu esforço amplo para usar a guerra para mobilizar a sociedade russa e eliminar qualquer dissensão potencial.
Alguns especialistas são céticos quanto às chances de os planos grandiosos darem fruto em pouco tempo, mas antes mesmo do início do novo ano letivo já estava ficando clara a potência da propaganda política para moldar as opiniões de crianças e adolescentes impressionáveis.
Um exemplo: uma aluna da nona série, Irina, disse que uma aula de computação que teria lugar em março em Moscou foi substituída pela exibição de uma reportagem da TV estatal sobre ucranianos se rendendo às tropas russas e uma aula explicando que a única informação na qual se pode confiar é a que vem de fontes oficiais. Ela não demorou a perceber uma mudança de atitude entre alguns amigos seus que inicialmente haviam ficado assustados ou confusos a guerra.
“De repente eles começaram a repetir tudo o que a televisão dizia”, conta Irina em entrevista telefônica que concedeu ao lado de sua mãe, Liubov Ten. “De repente começaram a dizer que aquilo tudo é merecido, que tem que acontecer. Não conseguiram nem sequer tentar me explicar isso.”
Irina diz que, quando confrontou seus amigos com os crimes de guerra cometidos por soldados russos em Butcha, eles retrucaram: “Isso é tudo propaganda”.
Em parte devido a sua recusa em criar filhos num ambiente cada vez mais militarizado, Ten e seu marido partiram para a Polônia na primavera.
Professores também estavam notando uma mudança. Na cidade de Pskov, perto da fronteira com a Estônia, a professora de inglês Irina Miliutina contou que inicialmente os alunos em sua escola discutiam acaloradamente se a Rússia tinha razão ou não em invadir a Ucrânia. Às vezes chegavam às vias de fato.
Mas as vozes dissidentes não demoraram a sumir. Os alunos passaram a rabiscar as letras Z e V —símbolos de apoio à guerra, devido às marcas que identificam os blindados russos invasores— nas lousas, carteiras e até no chão. Na hora do recreio, alunos de quinta e sexta série brincam de ser soldados russos, conta Miliutina. “Quando não gostam de alguém, chamam de ucraniano.”
De acordo com ativistas e com notícias publicadas em veículos noticiosos russos, as escolas em todo o país receberam as ordens. Daniil Ken, diretor de um sindicato independente de professores, compartilhou com o New York Times algumas ordens que professores teriam recebido e lhe transmitido.
Em uma aula, os alunos são ensinados sobre “conflitos híbridos sendo lançados contra a Rússia”, com uma reportagem da BBC sobre um ataque russo na Ucrânia e uma declaração do presidente Volodimir Zelenski apresentados como exemplos de fake news que visam semear a discórdia na sociedade russa. Um quiz ensina os alunos a desconfiar de quaisquer ativistas oposicionistas em suas comunidades.
“Uma das medidas eficazes do conflito híbrido é a promoção de agentes influenciadores na população local”, diz uma oração que o aluno deve classificar como verdadeira ou falsa. A resposta correta, é claro, é “verdadeira”.
A nova campanha representa uma intensificação do esforço travado por Putin há anos para militarizar a sociedade, intensificando os esforços pontuais feitos por autoridades após a invasão para persuadir jovens de que a guerra é justificada.
Novikov, que chefia a diretoria de “projetos públicos” do Kremlin, disse que, com a invasão da Ucrânia, em fevereiro, os professores passaram a enfrentar “uma tarefa urgente”: “realizar trabalho explicativo” e responder às “perguntas difíceis” dos estudantes.
“Enquanto tudo é mais ou menos controlável com os alunos mais jovens, os mais velhos recebem informação de uma gama diversa de canais”, diz, reconhecendo os temores do governo sobre a internet poder influir sobre as opiniões dos jovens. Sondagem no mês passado do Centro Levada, independente, indicou que 36% dos russos na faixa dos 18 aos 24 anos são contra a guerra, posição mantida por apenas 20% dos adultos.
O Kremlin está trabalhando para codificar suas ambições educacionais antes do início do próximo ano letivo. Uma proposta de decreto divulgada no mês passado pelo Ministério da Educação mostra que as duas décadas de Putin no poder serão consagradas no currículo escolar padrão como um ponto de virada histórica. Ao mesmo tempo, o próprio ensino de história passará a ser mais doutrinal.
O decreto prevê que as aulas de história russa incluam tópicos novos como “o renascimento da Rússia como grande potência no século 21”, “a reunificação com a Crimeia” e “a operação militar especial na Ucrânia”.
E, enquanto as diretrizes educacionais existentes preveem que os alunos devem ser capazes de avaliar “várias versões da história”, a nova proposta diz que eles devem aprender a “defender a verdade histórica” e “trazer à tona falsificações na história da pátria”.
Sendo funcionários públicos, os professores geralmente não têm escolha senão pautar-se pelas novas diretrizes. Mesmo assim, há sinais de resistência de base. Ken diz que a Aliança de Professores, seu sindicato, vem prestando assessoria jurídica a dezenas de docentes que se recusaram a dar as aulas de propaganda política, destacando que a agitação política em escolas é tecnicamente ilegal pelas leis russas. Em alguns casos, ele afirma, os diretores de colégios simplesmente cancelaram as aulas, cientes de sua impopularidade.
“É preciso encontrar a força moral necessária para não facilitar o mal”, diz Serguei Tchernishov, que é diretor de uma escola particular de ensino médio em Novosibirsk, na Sibéria, e tem resistido a promover a propaganda do governo. “Se não puder protestar contra ele, pelo menos não o ajude.”