Marina Helena*
Em 24 de outubro de 1991, o Brasil viveu um momento que podemos chamar de referencial para o processo de desburocratização do país. Foi nessa data que a Usiminas deixou as mãos do governo para ganhar o contorno da iniciativa privada e se tornou a primeira empresa a sair do papel para o mundo real do Plano Nacional de Desestatização. O martelo batido foi um divisor de águas entre a modernidade e o Brasil arcaico e significou o primeiro passo de tantos que vieram depois e demonstraram a necessidade de oxigenação do nosso Estado.
Nos anos seguintes, outras quatro empresas do ramo siderúrgico foram passadas para frente, entre elas, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e, com isso, fechou-se o ciclo do aço. Poucos anos depois, chegou a hora da segunda fase do processo, com privatização dos serviços — em especial, o da telefonia, que representa um do cases mais emblemáticos de um processo extremamente bem-sucedido no nosso país.
Para quem não se lembra mais ou ainda não era nascido, é sempre bom recordar que há pouco mais de 20 anos uma linha telefônica custava cerca de mil dólares. Era inacessível para população mais carente e a instalação de um telefone fixo demorava entre um e dois anos. Uma linha era algo tão caro que as pessoas declaravam no Imposto de Renda como patrimônio e havia inclusive aluguel de linhas para quem não quisesse ou não pudesse esperar. Existia até um mercado negro com instalação mais rápida, porém a custos que alcançavam dez mil dólares. Hoje uma linha é gratuita e a instalação imediata, só para citarmos dois benefícios com essa privatização.
Com algumas concessões, as rodovias também trocaram de mãos nessa onda privatizante e um observador mais animado poderia ter dito na época que o Brasil iria deslanchar. Mas não foi bem assim. Com o passar dos anos, as privatizações perderam força e estacionaram. Atualmente, o governo federal possui aproximadamente 180 empresas estatais, entre matrizes ligadas diretamente à União, subsidiárias e outras dezenas ligadas a Estados e municípios.
A maioria delas é completamente desconhecida dos brasileiros. Algumas estatais têm nomes curiosos e funcionalidades para lá de duvidosas. É o caso da Amazônia Azul (Amazul), que tem a responsabilidade de desenvolver tecnologias para o programa nuclear brasileiro, especialmente o submarino nuclear. Também temos a 5283 Participações, uma empresa criada pela Petrobras para que a petrolífera tenha participações societárias em outras empresas. Complicado, não? Como o nome, aliás. Ainda temos o Ceitec, empresa que produz o “chip do boi”, Nuclep, Ceasaminas, Hemobras, Valec, EPL (empresa que deveria viabilizar o trem-bala), e por aí vai.
Não podemos esquecer da cereja do bolo que é a Natex, a estatal que fabrica camisinhas no Acre. Isso mesmo. Ao que consta, a empresa surgiu como uma alternativa sustentável para o abastecimento nacional de camisinhas, mas o que se vê de fato é um elefante branco encravado na cidade de Xapuri cuja produção volta e meia é paralisada por conta de greves devido ao atraso dos salários.
A estatal está sempre acumulando prejuízos e sua existência é difícil de ser explicada. Qualquer empresa que tenha como seu maior acionista o Tesouro Nacional, a rede de incentivos funciona de maneiras um tanto distintas. Eventuais maus negócios e seus subsequentes prejuízos ou descapitalizações serão prontamente cobertos pela viúva — ou seja, por nós, pagadores de impostos, ainda que de modos rocambolescos e indiretos.
Mais: uma empresa ser gerida pelo governo significa que ela opera sem precisar se sujeitar ao mecanismo do lucro. Todos os déficits operacionais serão cobertos pelo Tesouro, que vai utilizar o dinheiro confiscado via impostos dos desafortunados cidadãos. Uma estatal não precisa de incentivos, pois não sofre concorrência financeira — seus fundos, oriundos do Tesouro, em tese são infinitos. Por que se esforçar para ser eficiente se você sabe que, se algo der errado, a Grande Mãe estará ali para te ajudar?
Desvincular-se dessas amarras dificilmente atrai interesses republicanos. Pude verificar isso com meus próprios olhos, pois, quando eu integrava o governo federal e estávamos estruturando os termos da privatização da Eletrobras, recebi muitos parlamentares na minha sala para discutir o projeto. E todos só queriam saber a respeito dos cargos que deixariam de existir se a privatização fosse efetivada. Não teve um que levantou a preocupação a respeito dos desdobramentos da conta de luz para o bolso do contribuinte. Eram só moscas ávidas.
No texto que circulou no Congresso sobre a privatização da Eletrobras, foram enfiados jabutis de todos os tipos: 1) garantir que os cargos comissionados fossem remanejados; 2) assegurar que grandes obras, como gasodutos e linhões, fossem construídos por escolha do Congresso; 3) subsidiar por mais tempo energias poluentes.
Há um discurso corrente baseado na ideia de que as estatais são um patrimônio brasileiro que nunca deve ser vendido, mesmo quando cause prejuízos ao Erário. Isso ocorre quando somos obrigados a aumentar impostos para mascarar a ineficiência da estatal, muitas vezes para manter empregos de fachada e aumentar os escândalos de corrupção. No entanto, para esses defensores, isso tudo é secundário, visto que as estatais passaram a ser “santificadas” de maneira quase irracional.
Será mesmo que em detrimento desse orgulho nacional precisamos de estatais para gerir postos de gasolina mesmo existindo várias empresas, nacionais e estrangeiras, que operam nesse setor no Brasil inteiro? Precisamos mesmo de emissoras de televisão e de rádio onde existem milhares de companhias privadas no setor que atendem de fato ao país?
Apesar dos avanços observados e da ambiciosa agenda de desestatização prevista, não devemos subestimar a complexidade do processo e os obstáculos nos próximos anos. Essa pauta deverá perdurar por pelo menos mais uma década, havendo vontade política de avançar e compreensão da sociedade de sua importância. Há perigo de retroagir, o que seria um crime, pois a redução na quantidade de estatais no país é essencial de modo a reequilibrar as contas do governo e retomar a capacidade de investimento do Estado. Não há outro caminho. Não privatizar faz com que a economia fique em estado de inanição permanente. E toda a sociedade paga por isso. É aquela velha história do provérbio árabe: por causa da rosa, a erva daninha acaba sendo regada.
Leia também: “O custo da ineficiência”, reportagem de Cristyan Costa publicada na Edição 2 da Revista Oeste
*Marina Helena Santos é formada em Economia pela Universidade de Brasília, com mestrado na mesma universidade. Possui mais de 14 anos de experiência como economista no mercado financeiro em instituições como Itaú Asset, Banco Bradesco, Quest Investimentos, Mauá Capital e Bozano Investimentos. Foi diretora de Desestatização do Ministério da Economia em 2019 e também CEO do Instituto Millenium. É fundadora do Movimento Brasil Sem Privilégios.