A escalada de violência por intolerância política que assombra o Brasil às vésperas das eleições de 2022 teve uma de suas vítimas mais simbólicas em outubro de 2018, quando o mestre de capoeira Moa do Katendê, 63, foi assassinado em um bar na comunidade do Dique Pequeno, em Salvador.
O crime, que completa quatro anos em outubro, teve desfecho na Justiça em novembro de 2019, quando o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana foi condenado a 22 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado, por motivo fútil e impossibilidade de defesa da vítima.
Entre a família e amigos, contudo, permanece viva a luta pela manutenção do trabalho social de Moa do Katendê e pela preservação do legado de seu trabalho na capoeira e na música.
“Queremos dar continuidade às coisas que ele deixou. Mostrar para as pessoas que a cultura salva vidas e alimenta e alma das pessoas”, afirma Jasse Mahi Reis da Costa, 31, filha do mestre de capoeira.
Moa do Katendê foi morto com 13 golpes de faca horas depois do 1º turno das eleições para presidente da República, após uma discussão relacionada à disputa eleitoral.
Conforme a denúncia do Ministério Público do Estado da Bahia, Paulo Sérgio Ferreira de Santana e Moa discutiram em voz alta e “agrediram-se mutuamente de forma verbal”. O capoeirista defendeu o candidato do PT, Fernando Haddad, e Paulo Sérgio, Jair Bolsonaro, então no PSL.
A discussão terminou de forma ríspida. Paulo Sérgio voltou para casa, pegou uma faca e retornou ao bar, onde golpeou o capoeirista pelas costas. Foi detido ainda naquela noite pela polícia, que seguiu o rastro de sangue até encontrá-lo em casa.
O ataque também atingiu Germino Pereira, primo de Moa, ferido por uma “profunda facada” no braço direito quando tentou defender o capoeirista.
Familiares de Moa optaram por não falar sobre o crime de 2018 nem sobre violência política do país, que ganhou força após o assassinato em Foz do Iguaçu (PR) do guarda municipal petista Marcelo de Arruda pelo militante bolsonarista e policial penal Jorge José da Rocha Guaranho.
Mas destacaram o legado de Moa do Katendê. Com o nome de batismo Romualdo Rosário da Costa, Moa começou praticar capoeira aos oito anos no terreiro de sua tia, o Ilê Axé Omin Bain, e com o tempo se tornou um dos maiores mestres de capoeira de Angola da Bahia.
Embora seja reconhecido na capoeira, Mestre Moa teve relevância na música e no Carnaval de Salvador. Compôs músicas para o bloco afro Ilê Aiyê, foi um dos fundadores do afoxé Badauê e se tornou figura central da construção de uma identidade musical afro-brasileira.
O assassinato de Moa gerou comoção na Bahia e repercutiu internacionalmente. Grupos de capoeira e movimentos ligados à cultura afro-brasileira fizeram homenagens com atos em diversas cidades.
Nos meses seguintes, o Governo da Bahia batizou uma escola em Salvador com o nome do mestre de capoeira e fez um monumento em sua homenagem nas proximidades do Dique do Tororó.
A família está focada na construção do Instituto Mestre Moa do Katendê, no Dique Pequeno, que segue a passos lentos e sem apoio do poder público.
“O apoio que a gente tem é dos de mestres que eram parceiros [de Moa]. Eles mandaram dinheiro e alguns materiais que meu pai deixou e a gente vendeu. Com isso, a gente foi dando o pontapé nas obras do instituto”, afirma Jesse Mahi.
Amigos de Moa criticam a falta de apoio para projetos que envolvam o trabalho de Moa. O produtor cultural Geraldo Badá, amigo de Moa desde os anos 1970, diz que houve um uso da imagem de Moa por parte de políticos, mas sem um cuidado com o seu legado na cultura e na capoeira.
“Um ano depois [da morte de Moa], ninguém fez mais homenagens, foi só aquele momento político. As pessoas de fora fizeram mais coisas por mais tempo do que o pessoal aqui de Salvador”, afirma.
O mestre de capoeira Plínio Ferreira destaca que o legado de Moa vai além da Bahia: ele deixou contribuições em cidades como Porto Alegre, Florianópolis e, sobretudo, São Paulo.
Na capital paulista, Plínio e Moa fundaram em 1994 o afoxé Amigos de Katendê, que desfila todo 13 de junho, dia de Santo Antônio, em homenagem ao orixá Ogum.
“Moa tinha um leque enorme de conhecimentos. Era um guardião da capoeira Angola, ogã do candomblé, foi arte-educador e teve participação ativa no movimento negro. Deixou muitos alunos nos lugares onde passou e um legado que vamos levar adiante”, afirma Plínio.
Uma das homenagens ao mestre de capoeira será o documentário “Môa, Raiz Afro Mãe”, produção da Kana Filmes com direção de Gustavo McNair e previsão de lançamento em outubro.
O filme começou a ser produzido antes da morte de Moa, que chegou a gravar entrevistas para o documentário.
“Mestre Moa era uma pessoa de muita força, muito conhecimento. Todas as experiências com ele foram de muito aprendizado”, afirma Filipe Machado, produtor executivo do filme.
O projeto ainda prevê o lançamento do disco “Raiz Afro Mãe”, com músicas autorais de Moa.